Antão e quê...? *

Um futuro positivo para a música Clássica?

Todos os dias somos confrontados com notícias catastróficas sobre todo e qualquer tema. Os noticiários e as redes sociais enchem-nos de pensamentos negativos e damos connosco a pensar em música da mesma forma que nos é mostrado o mundo por todas as plataformas digitais que usamos: de um prisma negativista. Não só a pandemia que atualmente enfrentamos veio enfatizar esta tendência, como também as perspetivas do futuro da música (Clássica ou erudita) como a conhecemos parecem ter os dias contados.

Sempre nos considerámos pessoas bastante positivas e, apesar desta filosofia de vida, também nos questionamos e refletimos sobre todos estes temas e problemas, comuns a todos nós. O maior refúgio que encontramos para estas temáticas é a leitura. E como a música não é uma realidade isolada, tampouco achamos pertinente restringir as ideias e reflexões a esta arte: é no cruzamento de áreas de conhecimento que encontramos sinais encorajadores para o nosso futuro, e são algumas destas ideias que gostaríamos de partilhar convosco.

Que se declare moribunda a música Clássica não é algo novo. Já esta profecia foi feita muitas vezes, como igualmente será feita (assim esperamos!) por muito mais tempo. Achamos brilhante a analogia feita por Leon Botstein (1996) com o Yiddish, idioma cuja morte fora há muito tempo anunciada, mas que nunca chegou. O mesmo autor (Botstein, 1994) festeja noutro artigo o renascimento da ópera através da tecnologia. E não podemos descartar o fato de que nunca se ouviu nem produziu tanta música Clássica como nos últimos anos! Mas não é sobre exemplos musicais que nos tencionamos debruçar, nem podemos sequer prever com propriedade o que se passará no futuro. Gostaríamos apenas de oferecer um pouco de positivismo perante todas as dificuldades com que nos deparamos. nomeadamente partilhando convosco o que poderá ser o impacto da tecnologia nas nossas vidas, e não apenas como músicos.

Um dos nossos ídolos de infância, o xadrezista Garry Kasparov, debruça-se sobre este tema de forma muito lúcida e minuciosa, tal como o fez de maneira brilhante no tabuleiro para manter o título mundial por vários anos. Este génio (que agora é uma das figuras da Inteligência Artificial) viu a tecnologia ameaçar o seu mundo, pensou que seria o fim da sua arte e, por incrível que pareça, orquestrou o renascer de uma modalidade que se considerava destinada ao esquecimento. Tal como a música Clássica, o xadrez foi evoluindo durante séculos e, identicamente, parecia destinado ao esquecimento. Ainda há poucas décadas o xadrez era visto como uma metáfora do génio intelectual humano, ao ponto de o desenvolvimento da inteligência artificial ser medido na capacidade de os novos computadores conseguirem bater os génios deste desporto. A vitória do Deep Blue (criado pela IBM) sobre o campeão mundial simbolizou um marco importante na evolução tecnológico-cognitiva, e o presságio de que o fascínio do xadrez teria chegado ao fim. Passados mais de 20 anos, o xadrez goza de uma popularidade como nunca antes vista, com um público cada vez mais jovem.

Mas como se justifica a popularidade do xadrez, onde a superação da máquina sobre o homem está mais que documentada? Tal como expõe Kasparov no seu livro Deep Thinking, a partir do momento que a tecnologia nos oferece novas comodidades, é difícil – se não mesmo impossível – voltar à situação anterior. Já não nos imaginamos a ter elevadores operados manualmente, ou a ter que usar um metrónomo analógico, talvez nem mesmo um metrónomo que não seja uma App! Muitas das coisas que foram suplantadas pela facilidade e eficiência tecnológica são hoje feitas de forma tradicional apenas pelo prazer de as fazer. E não ajuda perder tempo a protestar sobre o uso tecnológico, pois este não retrocede. Hoje em dia somos chamados a abraçar os desenvolvimentos tecnológicos, mas também a refletir: refletir sobre como estes desenvolvimentos devem ser usados da melhor maneira para o bem comum. Foi assim que o xadrez se conseguiu reinventar. Ainda que o cálculo de um supercomputador seja mais eficaz que o de um humano, a mente humana tem uma capacidade exemplar de reconhecimento e avaliação de padrões, pelo que o desenvolvimento tático era, durante bastante tempo, a chave para vencer a superioridade de cálculo no tabuleiro de xadrez, uma vantagem que neste momento já foi anulada pela força de cálculo extraordinária dos atuais computadores. Acreditamos que o sentido estratégico tenha paralelismo na música, em que a organização sonora - muito além da perfeição técnica - será o ponto onde reside a arte humana.

Mas os benefícios da tecnologia também se fizeram sentir noutros aspetos: a possibilidade de, quase de imediato, ter acesso a jogos que decorreram no outro lado do mundo foi uma autêntica revolução, assim como a possibilidade de ter os registos de jogos passados ao alcance de um gesto. Hoje em dia, é na cooperação máquina-humano que reside o renascer do xadrez, juntamente com a possibilidade de jogos online que expandiu grandemente a comunidade do xadrez.

De facto, a nosso ver, este é um dos maiores desafios da atualidade: num mundo de constantes mudanças e desenvolvimentos tecnológicos, onde ficará o nosso humanismo? O afamado historiador e autor Yuval N. Harari evoca muitas vezes a ideia de que, com o desenvolvimento (que alguns diriam descontrolado) da inteligência artificial, caberia ao Homem impor os limites éticos e morais, e que para isso os recursos humanos se poderiam vir a reforçar em áreas como a filosofia.

Em 2015, numa conferência sobre práticas inovadoras no século XXI, ficámos surpreendidos quando um dos apresentadores convidados falou das maiores conquistas da inteligência artificial. Um dos maiores feitos tinha sido recriar a capacidade musical de alguns génios do piano, imitando as capacidades humanas. O facto de um supercomputador poder analisar toda a nossa produção sonora e encontrar formas de reproduzir a nossa forma de tocar pode ser assustador.

Mas será que é?

Tanto no xadrez como na música, o fascínio humano não vem da capacidade de reprodução sem falhas, mas sim do planeamento estratégico/musical, na busca de padrões e sentido nas nossas decisões, seja numa jogada no tabuleiro, ou numa escolha musical. O ouvinte é fascinado por essas escolhas, mas igualmente pela capacidade e coragem de um músico se deixar julgar aos holofotes de uma sala de concertos; em suma, pela capacidade de superação humana. Obviamente que uma capacidade técnica superior amplia o leque de possibilidades musicais, mas claramente o ser humano tem mais a ganhar em ser humano do que em tentar copiar uma máquina. Já somos auxiliados nas nossas práticas diárias por facilitismos tecnológicos, seja no estudo ou na procura de informação. Quantos de nós não estamos gratos pelo bom que é ter conhecimento disponível online, ou mesmo as simples gravações, para analisar repetidamente tanto os grandes mestres como a nós mesmos? Queremos mesmo voltar atrás no tempo? Ao tempo que era alegadamente bom?

Mesmo que se quisesse, não dá. É verdade que a disrupção tecnológica ajuda mais uns que outros, mas também cria oportunidades. E depois de mais de um ano de confinamentos e de nos cansarmos de atividade online, creio que a necessidade por música ao vivo será ainda maior. A música é um constructo humano, social e cultural e, portanto, só faz sentido quando feita em contexto humano.

Não queremos com isto desprezar todas as iniciativas virtuais que nos proporcionaram algumas lufadas de ar fresco neste já longo confinamento, apenas considerar que a música ao vivo terá uma importância acrescida no futuro.

Até porque não só os humanos fazem música, como fazer música nos torna mais humanos. 

Referências:

Botstein, L. (1994). The Opera Revival. The Musical Quarterly, 78(1), 1–8.

Botstein, L. (1996). The Future of the Orchestra. The Musical Quarterly, 80(2), 189–193.

Kasparov, G. (2018). Deep Thinking. Publisher: John Murray.

*obrigado ao compositor e amigo Alexandre Almeida, compositor da obra homónima que inspirou o título desta crónica.