Cinco Desafios da Música de Câmara

III. Dinâmica de Grupos e Música de Câmara

 — 

Eli da Glória Camargo Jr.

III. Dinâmica de Grupos e Música de Câmara

 

As escolas oficiais de Música em Portugal são locais privilegiados para a formação de grupos camerísticos, a partir do momento em que os professores actuem de forma estratégica no trabalho que inicia com o agrupamento de alunos, consolida-se na criação de repertórios e amadurece em recitais públicos. A Área de Formação destes grupos abrange a escola, os professores e os espaços onde decorre o ensino e a convivência habitual; a sua Área de Intervenção será onde actuam em recital e são apreciados pelo valor imediato da sua performance em palco, fora do contexto e das relações presentes na Área de Formação. Grupos que transitam entre estas duas Áreas atingem os melhores níveis de desempenho, reforçam a presença das escolas nas comunidades e estimulam os apoios financeiros e logísticos de que a Área de Formação necessita.

A seleção dos alunos e o número de participantes é decisivo, podendo-se adotar critérios como a disponibilidade de horários, de desempenho individual, etc. Mas há também que conjugar a vertente de técnica musical e pedagogia, e as escolhas que podem facilitar o trânsito do grupo entre Área de Formação e Área de Intervenção.

 

As possibilidades de interacção estruturam grupos

Há muitas formas de fazer música que podem legitimamente chamar-se ‘música de câmera’. Aqui está em foco a música de grupos autónomos - i.e. sem director - onde cada intérprete tem uma parte única e essencial para a integridade da obra, executada com instrumentos acústicos. Para o trabalho didáctico com estes grupos aponto como fonte de recursos a Psicologia na vertente Dinâmica de Grupos, que caracterizam um ensemble camerístico como um pequeno grupo centrado na tarefa.

 

O termo ‘pequeno grupo’, ou grupo face to face, designa grupos formados entre três e doze participantes, observando-se sobre isto dois factores importantes. O primeiro é a riqueza e variedade de interacções que o número de pessoas torna possível: dois participantes tem um poder limitado de interacções dado que A comunica com e estimula apenas B, que por sua vez reage e estimula apenas A. As possibilidades crescem exponencialmente a partir de três participantes, onde A pode interagir com B, ou com C, ou ainda com um subgrupo formado por B+C, e assim sucessivamente. O segundo factor importante é o limite humano em processar informação para dar respostas interpessoais: num grupo formado entre três e, digamos, cinco participantes, a visão, a audição, e a capacidade de respostas não estão saturadas. Ainda mantém-se a característica face to face e os modos de comunicação entre indivíduo e indivíduo, ou entre indivíduo e sub grupo. Muitos investigadores apontam entre cinco e sete participantes como o limite onde as trocas individualizadas começam a ceder lugar para a comunicação entre sub grupos - esbatendo-se então a característica face to face.

 

Formações instrumentais e ‘diálogo’ musical

Considerando transversalmente os repertórios camerísticos instrumentais mais comuns, podemos perceber como os arquétipos descritos da Psicologia estão presentes na Música. Os duos são a formação mais limitada em complexidade sonora, e isto evidencia ao máximo a expressão individualizada dos solistas. Os trios tem muito mais recursos de densidade, timbre, articulação, etc., e promovem o diálogo sonoro e gestual que se revela entre indivíduo e indivíduo, e entre indivíduo e um duo. Os quartetos são os preferidos como os mais equilibrados e mais completos, sendo a formação mais representada em termos de quantidade de obras com importância histórica. Nesta formação é ainda mais claro o ‘diálogo’, dado possibilitar também interacções entre solista e trio, ou entre quatro solistas, por exemplo. Os quintetos e sextetos começam a refletir a complexidade dos subgrupos chegando ao limite onde o ‘diálogo’ perde-se; a quantidade de obras para estas formações é menor, comparativamente aos quartetos, havendo a tendência de ganharem mais leveza formal e estética. Septetos são raros, os octetos ainda mais, porque já estamos numa fronteira onde a densidade sonora do grupo é tão elevada que começa a haver necessidade de um maestro para coordenação.

 

Esta resumida descrição intenta demonstrar que a formação de grupos camerísticos também segue os padrões do nosso comportamento social, visando uma pedagogia eficaz. É claramente centrada sobre repertórios já tradicionais, dado o reduzido repertório mais recente que seja acessível ao tipo de grupos tratados aqui.

 

Formação de conjuntos nas escolas oficiais de música

Formar grupos de aprendizado da Música de Câmara nas nossas escolas depende capitalmente do parâmetro numérico, dada a ambição de que os nossos alunos desenvolvam a sua personalidade musical também no diálogo instrumental e gestual. É importante notar que o factor numérico deve ser modulado pela intenção pedagógica, onde as assimetrias são um factor essencial - agrupar alunos com uma tarefa em comum e diferentes níveis de desenvolvimento cria grupos vocacionados para a autonomia, um objectivo primário para quem ambiciona apresentar-se em recitais.

 

Como indicação geral e pensando num grupo de iniciantes, creio que o músico professor poderá ter sucesso agrupando alunos entre o terceiro e o quinto grau nas disciplinas das nossas escolas oficiais de música. Esta assimetria entre graus cria também mais opções de horários, que são habitualmente tão difíceis de serem marcados para estes grupos. Criando trios, quartetos e quintetos nestas condições, o professor garante um início seguro para que o aprendizado possa chegar ao ponto das performances públicas. Toda a estratégia e diligência necessárias para isto são parte do desafio cuja recompensa é, sem dúvida, das mais gratificantes.

 

 

Eli Camargo Júnior criou grupos camerísticos nas escolas Canto Firme de Tomar, Conservatório Regional de Castelo Branco, Escola de Música do Choral Phydellius, Escola de Música do Orfeão de Leiria, Academia de Música e Dança do Fundão, Escola de Música do Conservatório Nacional de Lisboa, Instituto Piaget Campus de Almada. Criou projectos para as Classes de Conjunto que foram apoiados e monitorizados por instituições como o Núcleo do Ensino Artístico e o Ministério da Educação, incluindose ‘Grupos Não Convencionais’ no Conservatório Regional de Castelo Branco e na Escola Canto Firme, os Cursos de Música de Câmara do Fundão, os concertos das suas Classes de Música de Câmara no Conservatório Nacional de Lisboa - ‘Mares dantes navegados’ no Museu do Chiado e Museu Vieira da Silva, ‘Os quatro cantos da casa’ nos Dias da Música, CCB, e ‘Interface Acústico para um monumento’ no Mosteiro dos Jerónimos. É bacharel em Guitarra Clássica e foi atuante como solista em Portugal e no Brasil; é Licenciado em Composição pela ESML e Doutorado em Composição pela UE, onde efetuou a investigação ‘Sincronismo na Música de Câmara, estratégias composicionais’. É Professor no Conservatório Nacional de Lisboa.

Artigos sugeridos