Eli da Glória Camargo Jr.
IV. Formações instrumentais nas Escolas
As Escolas Oficiais de Música em Portugal são locais privilegiados para a formação de grupos camerísticos, desde que os professores atuem de forma estratégica também na sua formação instrumental. Uma vez que o professor selecione os alunos com possibilidades de horário e uma desejável assimetria entre os seus graus1, a próxima etapa será a combinação dos instrumentos em ensemble. Esta escolha será determinante em dois aspectos fundamentais: permitirá a construção de um repertório coerente em termos estéticos; criará ensembles com sonoridades tão ricas e equilibradas que se possam oferecer à apreciação do público em concertos.
Para estudar as formações camerísticas 2 observei-as como resultados de convenção, isto é, a reunião de factores sociais (como o gosto do público ou difusão de obras) com elementos puramente musicais (como o desenvolvimento técnico dos performers, estilos de composição, etc). Sob este ponto de vista, Conjuntos Convencionais são aqueles preferidos e mais importantes em alguma altura, são titulares dos repertórios mais vastos e das obras mais emblemáticas, o que ainda hoje lhes garante a vitalidade no campo da Musica. A sua combinação instrumental habitualmente equilibra diferenças de timbre, de projecção sonora, tessitura, etc. São exemplos conhecidos o quarteto de cordas, o trio com piano ou o quinteto de sopros.
Sobre um Conjunto Convencional do Século XVI - o ensemble de violas da gamba - há uma descrição que demonstra como as convenções de uma época influenciam as formações instrumentais:
‘During the period 1550-1660 there flourished in England a kind of chamber music with has not surpassed. It was written for viols of various sizes and combinations, the numbers of instruments ranging from two to six. (…) It was a perfect medium for the realization of this intimate music, in which the enjoyment of the performers was the chief consideration. Moreover, it is much easier to play the viol than the violin; anybody can in a short time learn to play the viol well enough to enjoy taking part in a consort, for not only is the viol easy to play, but the parts in themselves are simple and never make any demand on virtuosity, an important consideration at a time when music had its proper place in everybody’s life’.3
Até meados do Século passado os Conjuntos Não Convencionais vieram sendo formações eventuais, com menos repertório e menos obras representativas em comparação as formações convencionais. São ensembles com alguma disparidade de equilíbrio em relação aos parâmetros conhecidos - timbre, projeção sonora, quantidade de instrumentos, etc. No Período Clássico, por exemplo, Mozart é o compositor que mais escreveu para formações Não Convencionais. Nas palavras de Sir Donald Francis Tovey, quando analisou o Quinteto em E Bemol K. 452 para piano, oboé, clarinete, trompa e fagote:
(…) This Quintet ought to help more easily than most realize Mozart’s greatness, because is written for a very unusual combination of instruments, so that the estrange conditions and limitations of Mozart material give us those clues to great artist’s cunning with cannot detected by researches in works produced with more plastic resources. 4
A despeito da sua eventualidade e das suas possíveis idiossincrasias, algumas formações Não Convencionais persistem ao longo da História, tornando-se novos Conjuntos Convencionais. Disto são dois exemplos o trio consagrado por Debussy na sua Sonate (Flauta, Viola e Harpa, de 1915), e a formação hoje chamada de ‘Quinteto Pierrot’ (Flauta, Clarinete, Violino, Cello e Piano) criada para a obra Pierrot Lunaire (1912), de Arnold Schönberg - formações instrumentais que ainda recebem novas obras.
A partir da segunda metade do Século XX tornou-se evidente que o campo da Música é uma grande fábrica de novas formações instrumentais, difundindo-se o entendimento que um grupo camerístico pode produzir Arte com qualidade, sem constrangimentos pela sua formação instrumental mas, ao contrário, explorando musicalmente o seu aspecto Não Convencional. Hoje é comum o ensemble que cria sonoridades próprias pela intersecção de particularidades instrumentais e propostas estéticas, incitando os compositores à criação de novos repertórios. Como exemplo posso citar grupos portugueses, excepcionais: Opus Ensemble (Viola, Contrabaixo, Piano e Oboé); Tuba, Guitarra e Bateria e o Duo Contracello (Violoncello e Contrabaixo), Entre Madeiras Trio (Flauta, Oboé e Saxofone).
Estas observações vem no sentido de apontar os Conjuntos Não Convencionais como uma espécie de formação flexível, actual, que pode ser também um valioso meio de pedagogia e arte para os professores das Escolas Oficiais. Porque mesmo numa Escola de porte modesto é sempre possível criar ensembles com uma formação instrumental bem resolvida. O equilíbrio acústico, por exemplo: para um aluno de Guitarra Clássica, no 4º grau de instrumento, poderia ser difícil participar num quarteto com cordas friccionadas e algum instrumento de sopro. A solução mais imediata seria dar-lhe partes de acompanhamento, reduzindo o potencial do grupo. Entretanto, acrescentando um colega do quinto ou sexto grau do mesmo instrumento, cria-se um duo que é funcional como centro harmónico do ensemble e permite momentos solísticos também para a Guitarra. Supondo um quinteto deste tipo: duas Guitarras (entre terceiro e sexto Graus), um Clarinete, uma Flauta Transversal (a partir do terceiro Grau), um Cello (a partir do terceiro/quarto Graus) - teríamos um grupo capaz de ser treinado para tocar em concertos fora da Escola. Este exemplo é uma das possíveis ‘matrizes’ para Conjuntos Não Convencionais de iniciantes, que pode ser realizada com sucesso na maioria das nossas Escolas Oficiais de Música - um centro harmónico feito por piano a quatro mãos, ou por duas guitarras; um instrumento grave, como Contrabaixo ou Cello; dois instrumentos melódicos para os registros médio/agudo, como por exemplo dois Clarinetes em Si Bemol, ou duas flautas transversais, ou um violino e um clarinete, ou…etc.
Vejo aí o IV desafio para um Professor da Disciplina de Música de Câmera: organizar grupos com um número de alunos entre três e cinco, cursando entre o terceiro e sexto Graus da Disciplina de Instrumento, com o correspondente grau na Disciplina de Formação Musical; cuidar que estes ensembles tenham equilíbrio entre os timbres, na projecção sonora e nos seus registros. As recompensas virão certamente na formação pedagógico artística mais acelerada e intensa, e nos concertos que valorizam a Escola como Área de Formação - Conjuntos Não Convencionais são uma ferramenta poderosa também sob este ponto de vista.
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1 Cf artigo anterior - Dacapo, 20 ag 2021 - ‘Dinâmica de grupos e música de Câmera’.
2 Cf. E.C,Junior, 1996, ’Classes de conjunto baseadas em Conjuntos Não Convencionais’ - estudo e projecto aceito pelo Núcleo do Ensino Artístico como Experiência Pedagógica no Conservatório Regional de Castelo Branco, sendo monitorizado pelo Ministério da Educação. Em 2000 o ministério da Educação aceitou o mesmo projecto, então expandido como currículo escolar, para conceder o Paralelismo Pedagógico à Escola Canto Firme, de Tomar. Nos anos seguintes o mesmo projecto serviu à formação de Professores no Instituto Piaget de Almada.
3 Cobbett’s Cyclopedic Survey of Chamber Music, Second Edition, Volume I, pp. 295. Oxford university Press 1963.
4 Tovey, F. (1944) Essays in Musical Analysis - Chamber Music. London: OUP.