Cinco Desafios da Música de Câmara

V. Repertório Camerístico para ensembles de alunos

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Eli da Glória Camargo Jr.

V. Repertório Camerístico para ensembles de alunos

 

As Escolas Oficiais de Música em Portugal são locais privilegiados para a formação de grupos camerísticos, desde que os Professores actuem de forma estratégica na escolha das formações instrumentais e dos repertórios que estas podem realizar.

Repertório é um problema comum para quase todos os Professores de Música de Câmara ao nível dos cursos secundários. Porque o sucesso dos grupos pode ser traçado a partir de uma escolha adequada das obras a serem estudadas, desde que sejam atendidos alguns critérios básicos. Em primeiro lugar é preciso que a dificuldade de cada parte esteja abaixo da capacidade de execução do aluno que a deve tocar - partes fáceis permitem que cada um esteja disponível para as interacções que sustentam a performance do grupo como um todo. Partes difíceis solicitam a concentração de cada um na sua própria performance, dificultando a precisão nas interacções e a musicalidade do grupo.

 

É importante notar que este ponto define uma pedagogia centrada em valores de Música de Câmera, que se distingue das pedagogias da formação instrumental - a facilidade de uma parte não é desmotivante se o aluno percebe que a sua intervenção é musicalmente essencial na performance do grupo. Em termos de escrita musical ‘partes essenciais’ são, por exemplo, aquelas que não tem dobragens, ou que contém algum momento a solo, ou que são as únicas tocadas em algum trecho, etc. Entretanto a componente artística é exigente, e sabemos que a expressividade de uma obra não pode ser espartilhada dentro de um nível baixo de dificuldade instrumental. Portanto há que aceitar momentos de maior dificuldade de execução em cada parte, encarando-os também como um valor camerístico.

 

Ao longo dos anos de aulas e da prática de Investigação - Acção tive oportunidade de comprovar a forte relação entre a percepção auditiva e capacidade de concentração dos alunos durante a execução. Chamei de Audição Inclusiva o tipo de percepção em que um aluno consegue tocar a sua parte ao mesmo tempo tem consciência das sonoridades e do campo visual do seu grupo - então o aluno intérprete participa numa espécie de ‘soma’. (Aquilo a que muitos dos meus colegas chamam de ‘ouvir o grupo’). Mas há também os momentos de Audição Exclusiva: quando a dificuldade da sua parte, ou um erro, solicitam a sua completa atenção e o aluno deixa de ouvir os colegas, agindo como um solista. Ser eficiente como aluno/ camerista é conseguir manter uma alternância instantânea e automatizada entre Audição Inclusiva e Audição Exclusiva, sem perdas na sua performance. Uma escolha de repertório eficaz dará aos alunos partes fáceis, com apenas alguns momentos mais exigentes, atendendo ao treinamento da parte pedagógica e a expressividade da parte artística.

 

Há ainda dois pontos decisivos na escolha de repertório para os grupos aqui tratados¹: o custo das  partituras compradas nas editoras, e conseguir obras com a instrumentação necessária. Sobre a despesa com partituras só posso acrescentar é que Professor e Escola habitualmente terão de ter contenção nas despesas, pensando no gasto de alguns grupos ao longo de um ano lectivo. Encontrar obras interessantes com a instrumentação que precisamos, tem três soluções evidentes - vasculhar constantemente os catálogos das editoras; procurar em sites como o IMSLP, e em sites que exponham obras de compositores actuais, como o MIC.pt onde alguma vez se oferecem partituras para download; pedir obras aos compositores com quem possa ter contacto. Meu conselho a quem deseja sucesso é que utilize as três vias, e mais uma exposta em seguida.

 

Lecionando em muitas escolas e com uma grande demanda de repertórios, para conseguir obras com qualidade empreguei também o recurso da instrumentação. Posso garantir que embora este seja um método trabalhoso, põe à disposição do Professor repertórios com dificuldade finamente controlada, abrindo escolhas estéticas para além do repertório Clássico Romântico. Há inclusive compositores que os alunos habitualmente não conhecem tocando o seu instrumento a solo, mas que podem conhecer pela música em grupo - como por exemplo um trio com duas Guitarras e Harpa, para quem instrumentei obras de Strawinsky.

 

Os professores com a actual formação exigida pelas Escolas com Paralelismo Pedagógico estão perfeitamente aptos para este tipo de tarefa embora, claro, exija algumas horas de trabalho para além das aulas - o que pode ser controlado, se combinado com os outros recursos de busca e escolha de obras. Criar um ‘Mix’ de soluções para escolha de repertórios é um desafio constante da Música de Câmera aos seus Professores. E sejam bem vindos os desafios - a dedicação pode bem com eles!

 

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¹ Ver artigo ‘Ad Libitum’, Revista DaCapo, 11 de Outubro 2021 - IV Formações instrumentais nas escolas.

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