Nuno Jacinto
Não é novidade – ou pelo menos não devia ser – que actualmente temos muitos jovens músicos, que formados em Música em Portugal, atravessam as fronteiras deste nosso país isoladamente encostado ao Oceano Atlântico, para outras paragens da Europa e não só. Estes jovens promissores – e eu diria la créme de la créme do que melhor se faz no ensino da Música em Portugal – instalam-se quase anonimamente nos principais centros europeus da Cultura da Música e estudam obstinadamente, dão-se a conhecer, privam com grandes mestres e por fim, integram as melhores orquestras e formações de câmara. Tornam-me eles próprios referências, procuram incessantemente reconhecimento que recebem de capital em capital europeia. Mas de Portugal, neste meio musical paroquial pouco se fala, pouco se conhece ou pior, pouco se promove e incita de modo a que estes músicos de excepcional qualidade possam assentar poiso ou realizar digressões reconhecidas e apoiadas no seu país, fazendo-os parte integrante do meio musical, rejuvenescendo-o. Oh, o sonho! Precisamos de arejo!
E para isso, abramos as janelas e deixemos entrar ares refrescantes e acolhedores vindos do centro da Europa, com o trabalho discográfico “Jeux D’Air” (“Jogos de Ar” da editora Prospero Classical, Suíça), o primeiro registo do ensemble de sopros “Reeds in Motion”. Formado em 2017 por cinco jovens músicos, dois portugueses – Catarina Castro no oboé, Lionel Andrey no clarinete, Rahel Kohler no saxofone, Filipa Nunes no clarinete baixo e Till Schneider no fagote – temos perante nós, uma distinta selecção de músicos pertencentes a orquestras como a Sinfónica de Berna, a Orquestra-Ópera de Zurique ou a Sinfónica de Basel. Adicionalmente, este disco apresenta uma notável qualidade de captação e gravação das intervenções dos instrumentos do ensemble, nas suas vinte e quatro faixas. Estes factos serão, no entanto, razão suficiente para um futuro risonho dos “Reeds in Motion”?
Esta formação constituída exclusivamente de instrumentos de palheta simples e dupla batente – denominada de quinteto de palhetas – é um dos maiores fenómenos da música de câmara dos sopros de madeira das últimas quatro décadas, pois a simbiose tímbrica destes instrumentos estimula-nos numa renovada audição e mais refinada de obras conhecidas de repertório erudito escritas originalmente para outros instrumentos: neste caso, para piano ou para voz e piano. É esta lufada de ar fresco que os “Reeds in Motion” nos proporcionam neste disco: apesar da escassez de repertório, os arranjos aqui apresentados respeitam escrupulosamente o texto musical original (até na tonalidade!) ao mesmo tempo que os reformula numa nova experiência sensorial de apreciação da escrita polifónica e das matizes tímbricas de cada instrumento. Este toque de Midas partilha-se por duas penas de arranjadores: por um lado, o incontornável saxofonista e compositor holandês Raaf Hekkema, porventura o embaixador desta formação com o seu Calefax Reed Quintet e promotor incansável de arranjos e obras originais para esta formação; por outro lado e em exclusivo para este disco, o compositor alemão Stefan Schroter, que colaborou em estreita ligação com os “Reeds in Motion” para formar um corpus coeso de repertório para este disco.
E que jogos de fôlego nos apresenta este conjunto de obras? Constituído exclusivamente por seis compositores franceses da viragem do século XX, temos três jogos de plena genialidade na composição de pequenas pérolas, pequenos sopros de inspiração universal mas de profundo impacto e prazer emocionais.
No primeiro jogo deste disco encontramos uma escolha curiosa: duas obras alusivas à voz, embora com posturas inteiramente diferentes. A primeira, as “Trois Romances sans Paroles” (Três Romances sem Palavras) op.17 do então jovem, Gabriel Fauré não é uma obra sobejamente conhecida ou tocada, que apesar de ser escrita para piano e seguir a tradição mendelssohniana, não vive a distinção das obras mais maduras do compositor francês. Destas três canções, são nas duas primeiras que encontramos a força motriz do quinteto de palhetas: a capacidade melódica colorida e variada, dando protagonismo aos três instrumentos naturalmente líderes: o oboé, o clarinete e o saxofone. É precisamente nesta ordem tímbrica que constatamos a leveza, a beleza límpida e sofisticadamente linear da linguagem de Fauré, logo no primeiro andamento (Andante quais Allegretto). O segundo andamento (Allegro molto), retoma esta ordem de protagonismo, mas numa ferocidade contida, onde as passagens acompanhadoras em arpejo viajam sem esforço de instrumento em instrumento – primeiro o clarinete e saxofone e depois o fagote e o clarinete baixo – numa fácil constatação do entrosamento simbiótico e íntimo dos “Reeds in Motion”. A segunda obra, “Cinq Melódies” (Cinco Melodias) do compositor Reynaldo Hahn são de enorme preciosidade. Um compositor ainda desfavorecido nos programas de concerto de hoje, as suas canções para voz e piano são das mais ternas e brilhantes da música erudita parisiense do início de século XX. E com esta formação de timbre quente acolhedor, podemos vibrar de modo mais intenso cada canção. Assim destaca-se a célebre canção “A Chloris”, uma peça alusiva à textura pulsante do barroco e a um motivo em grupeto repetitivo à semelhança de uma ária de Bach, levita-nos a um Olimpo de emoções quando o saxofone de Rahel Kohler nos sussurra magistralmente ao ouvido, doces palavras de amor. O andamento “Mai” será, porventura, o arranjo mais bem conseguido, assegurando que a parceria oboé/fagote e clarinete/clarinete baixo nos revela segredos de sublime sonho de uma primavera musical. Por fim “L’Enamourée” uma canção apaixonadamente suspirante, com destaque para o oboé da Catarina Castro e o clarinete baixo de Filipa Nunes, que nos fazer levitar a cada arpejo ascendente, fazendo-nos desejar que cada impulso perdure por mais um pouco, por mais uns momentos de paraíso.
O segundo jogo deste disco consiste em duas obras evocativas de uma infância perdida no tempo e na memória: a sobejamente conhecida suite para piano “Children’s Corner” de Claude Debussy e as “Villageoises” – Petites Piéces Enfantines de Francis Poulenc. Dois grandes compositores que dedicaram parte do seu tempo a criar pequenos andamentos sugestivos ao sabor de quadros infantis ou de danças tradicionais deliciosamente ingénuas e transbordantes de felicidade. A transmutação textual destas obras pianísticas para um conjunto de cinco instrumentos monofónicos revela desafios que só a conjugação imprescindível de um bom arranjo com uma aprimorada e cuidada execução camerística pode responder. Felizmente é o que acontece nesta contribuição discográfica dos “Reeds in Motion”: oiçamos por exemplo, o andamento “The Snow is Dancing” da obra debussyiana para contemplarmos a magistral transcrição da escrita saltitante em duas mãos virtuosamente articulada por entre os instrumentos, ou o famoso “Golliwogg’s Cake-Walk” para apreciarmos a vivacidade rítmica e a flexibilidade temporal que o quinteto nos consegue incutir e contagiar com incomportável excitação. Adicionalmente, a simplicidade das miniaturas poulencianas como o circense “Staccato” ou a modal “Petite Ronde” são de tal forma magistralmente incorporadas pelo ensemble, que se transformam efectivamente numa melhor versão que a original para piano. A ouvir e reouvir.
Por fim, o terceiro jogo alicerça-se no legado musical, na recordação longínqua de formas e técnicas antiquadas de outros séculos, mas muito queridas aos compositores franceses da viragem do século XX como escape do romantismo desgastado do seu tempo. Erik Satie, um enfant terrible de enorme influência e ácido humor, apresenta-se neste trabalho discográfico com a obra original para piano “Danses de Travers” (Danças Atravessadas) ou “Píéces Froides” (Peças Frias) nos seus três misteriosos e hipnóticos andamentos. A linguagem de Satie é minimal, seca até ao tutano, mas plena de novidades harmónicas e melódicas que surpreendem o ouvinte no seu refrescante e mordaz aborrecimento lírico. Estas três peças são disso exemplo, embora o resultado gravado do arranjo parece esforçar-se demasiado para dar sentido a um discurso que se quer morto, mórbido e ressequido. Talvez, o timbre repetitivo do piano poderá ser ainda o ideal para as peças satieanas. E assim chegamos a la pièce du resistánce, o “Menuet Antique” do então jovem Maurice Ravel. A peça de maior duração deste disco (uns míseros cinco minutos!) transporta-nos a um mundo antigo e reconhecível embora de realidade paralela – ouvimos a estrutura tipicamente tripartida de minueto e até um ciclo de quintas – mas esta é vedada de qualquer sentido de direccionalidade resolutiva, de verdadeiro impacto das forças motrizes do sistema funcional tonal. A transcrição para quinteto de palhetas enfatiza esta novidade arcaica – ou arcaísmo novo, escolham o melhor paradoxo – realçando as melhores qualidades de Ravel: sentido angular da melodia, harmonias subtis mas severamente cuidadas, embaladas num ritmo dançante enfadado. A verdadeira pérola deste arranjo está na secção intermédia: o clarinete de Lionel Andrey dá-nos o ar da sua graça, com leveza e pomposidade serena, apenas ultrapassada pelas pequenas mas substantivas intervenções nos agudos do oboé de Catarina Castro, que nos enriquece com a sua segurança de timbre.
Este trabalho discográfico “Jeux d’Air”, estando disponível tanto em formato físico como em todas as plataformas de streaming – como dita a regra do mercado fonográfico dos nossos dias - é deste modo, uma lufada de ar fresco e uma recomendação mais que óbvia para qualquer tipo de ouvinte: o conjunto de obras escolhidas determinam uma predilecção pela miniatura, pelos andamentos curtos mas substantivos que um ouvinte casual apreciará pela fácil audição; como apresenta uma linha condutora de estilos e linguagens coerentes e alicerçadas em grandes nomes da música francesa que proporciona ao ouvinte melómano um imediato interesse e farta satisfação. Todavia, a qualidade mais saliente deste trabalho está na performance dos “Reeds in Motion”: sem artifícios ou maneirismos, o ensemble apresenta uma qualidade sonora afável e cativante, alicerçada no cuidado e refinamento das intervenções de cada instrumento, contribuindo assim, numa jubilosa cumplicidade camerística de arrebatadora escuta. Pela auspiciosa qualidade deste primeiro trabalho discográfico, aguardemos ansiosamente por novos desenvolvimentos artísticos deste ensemble. Quem sabe, passando pelo território português. Pois o sonho, esse, não esmorece nunca.
Junho 2022
O autor não reconhece o Acordo Ortográfico de 1990.