Sandra Bastos
“A poesia é a grande fonte da minha paixão, se amo o canto é porque amo a palavra. Gosto de cantar como quem diz; no palco sinto-me no lugar mais-que-perfeito para que nasçam flores e estrelas, e quando digo isto, digo-o muito seriamente. Para mim não há nada mais sério que a poesia. Há a poesia da palavra dita e há a poesia da palavra não dita; a música e a perfomance são a oportunidade de experimentar ambas simultaneamente”, confessa Ana Maria Pinto, soprano.
“Dos 18 aos 20 anos respirava música de manhã à noite”
Natural do Porto, iniciou os seus estudos de canto no Conservatório de Música da mesma cidade com a professora Palmira Troufa. Diz que começou a estudar música “muito tarde”, aos 18 anos: “Nunca tinha feito um ditado rítmico. Tive dois anos para me preparar para o ensino superior. Dos 18 aos 20 anos respirava música de manhã à noite”.
Sente-se, por isso, muito grata à escola que a viu nascer e crescer para a música: “O Conservatório de Música do Porto era o meu sonho tornado realidade, e foi de facto um sonho o que vivi naqueles dois anos, a minha gratidão àquela casa não tem medida! Tive grandes professores que multiplicaram a minha vontade de chegar mais longe. O Luís Manoel Lopes e o Fernando Lapa foram dois professores que me deram tudo o que precisava para evoluir rapidamente e fazer uma boa prova de entrada no ensino superior, e assim foi”.
O canto “tinha tudo” o que precisava “para dizer o que queria dizer”
Em 2001, é admitida na ESMAE na classe do professor Rui Taveira: “Nessa altura o meu instrumento era o canto, mas eu queria ser maestrina de coros e compositora, e como estudava também piano, colocava igualmente a hipótese de ser pianista, enfim, o sonho era tudo”.
Foi só aos 22 anos que percebeu que o canto “tinha tudo” o que precisava “para dizer o que queria dizer”. “O professor Rui Taveira foi fundamental, foi ele quem me deu a paixão pela Canção”, conta.
“a Liberdade e o Amor são pilares muito mais altos que a própria música”
Foi estudar, em 2005, para a Universidade das Artes de Berlim, onde estudou cinco anos, primeiro com Robert Gambill e depois com Dagmar Schellenberger. “Decidi ir para a Alemanha sobretudo para aprender alemão. Claro que as oportunidades de trabalho lá são vastas e isso pesou na decisão, mas depois de sete anos de intensa aprendizagem em Berlim, decidi voltar para Portugal”, afirma.
Disse que “não” a uma grande oportunidade de trabalho: “Para mim a Liberdade profunda e o Amor estão em primeiro lugar, são pilares muito mais altos que a própria música”.
“Depois de uma ópera sinto-me verdadeiramente renascida”
“É incrível o quão libertadora é também a improvisação no teatro, depois de uma ópera sinto-me verdadeiramente renascida. O aperfeiçoamento musical a todos os níveis foi sempre o critério de escolha”, sublinha.
Em ópera destacam-se os papéis de Susanna (Le nozze di Figaro), Elle (La voix humaine), Blanche de La Force (Dialogues des Carmélites), Musetta (La Bohème), Micaela (Carmen), Rosina (O Barbeiro de Sevilha) Kumudha (A flowering tree de John Adams); e as obras de oratória, "Jauchzet Gott in allen Landen" de J. S. Bach“Nelson Messe” de J. Haydn, "Exultate Jubilate" de Mozart, “Ein deutsches Requiem” de J. Brahms, “Shéhérazade” de M. Ravel, 4º Sinfonia de Mahler, "Jeanne d'Arc au Bûcher" de Honnegger, , "Chanson de la mer et de l'amour" de Chausson, "Carmina Burana" de Carl Orff, "9º Sinfonia" e "Missa Solemnis" de Beethoven, “O Abismo e o Silêncio” e “Shyir” de João Pedro Oliveira.
Ana Maria Pinto destaca a Kumudha na ópera “The flowering Tree” que cantou na Fundação Calouste Gulbenkian, “música e imagens belíssimas”. Diz que “cantar a Susanna nas Bodas de Fígaro é incrível do início ao fim!”.
“Com o grande John [Mallkovich] aprendi que grandes são os humildes”
E claro, cantar com o Jonas Kaufmann e contracenar com o John Mallkovich no filme “The Giacomo Variations Film” que sairá este ano foi “incrível e fascinante”. As gravações decorreram em Agosto de 2013, a estreia em Portugal deve acontecer ainda este ano.
“Com o grande John aprendi que grandes são os humildes e que, independentemente do lugar que se ocupa, há sempre meio de se ser autêntico. O John Mallkovich, no intervalo de uma cena, veio ter comigo com um lenço na mão para limpar o brilho que eu tinha na cara, nessa cena tinha que segurar um candelabro perto do rosto, estar quieta e cantar ao mesmo tempo, foi muito difícil; aquele gesto deixou-me perplexa!”, salienta.
“Sempre que trabalho entre amigos é maravilhoso!”
Recorda com emoção um recital com Nuno Vieira de Almeida no Teatro de S. Luiz, na canção “Ich bin der Welt abhanden gekommen” de Gustav Mahler: “o Nuno ficou com as lágrimas nos olhos e do público saiu um bravo”.
O último recital que fez com Joana Resende, “As Anterianas” foi muito especial: “no final um casal inglês disse-nos que nunca tinham ouvido nada assim, sendo que já tinham visto muita coisa”. Também especial foi a Missa Solemnis de Beethoven nos Dias da Música do ano passado: “Sempre que trabalho entre amigos, o que acontece muito em Portugal, é maravilhoso!”.
Em Portugal, trabalha regularmente com a orquestra da Fundação Gulbenkian e com a Orquestra do Norte. Apresenta-se anualmente em diversas salas do país, entre elas, a Fundação Calouste Gulbenkian, CCB, Coliseu do Porto ou Teatro de São Luiz. “Tive a sorte, a bênção de encontrar pessoas que me apoiaram desde muito cedo, como o pianista Nuno Vieira de Almeida ou o maestro Ferreira Lobo da Orquestra do Norte, ou a Fundação Calouste Gulbenkian. Deram-me muito trabalho e foi com eles que evoluí verdadeiramente”, revela.
“Tenho quase um espírito de missão no que diz respeito à música portuguesa”
Em Agosto de 2009, gravou canções de Fernando Lopes Graça e Viana da Mota com o pianista Nuno Vieira de Almeida, com quem se apresenta todos os anos em concerto desde 2002. Neste álbum de estreia, a crítica do Expresso classificou o soprano Ana Maria Pinto como uma revelação. Em recital, apresenta-se também com os pianistas Cristóvão Luiz e Joana Resende.
“Tenho quase um espírito de missão no que diz respeito à música portuguesa, para com compositores como Fernando Lopes-Graça, Luís de Freitas Branco e compositores modernos, sinto que, toda a minha evolução vocal tende também para aí, para o meu à vontade para ser fiel às palavras, cantá-las claramente e profundamente com toda a liberdade”, reconhece.
Luta, assim, contra “um certo preconceito perante a música cantada em português”. Gravar as canções de Fernando Lopes-Graça com Nuno Vieira de Almeida foi, por isso, marcante: “a delicadeza, a subtileza com que posso pintar as palavras quando canto em português faz-me pisar aquele mundo, onde tudo é intensamente verdadeiro”.
Tem, para breve, a “firme vontade e direcção para gravar canção portuguesa”.
“Os sete anos que vivi em Berlim foram fundamentais para mim enquanto artista”
O panorama da música erudita em Portugal “cresceu imenso e há cada vez mais jovens a estudar no estrangeiro! Isso é fantástico!”. Ana Maria cresceu em Gondomar, “uma cidade que em termos culturais é uma nulidade”. Hoje há “muito mais informação do que há 15 anos, mais orquestras, mais escolas, mais gente, o programa Erasmus é precioso!”
“Quando há 10 anos atrás dizia que estudava música, perguntavam-me sempre, e o trabalho? Hoje já não é assim”, acrescenta.
Vê “com muita esperança” a nova geração de músicos portugueses: “O meu conselho é: vão estudar para o estrangeiro! Os sete anos que vivi em Berlim foram fundamentais para mim enquanto artista. É preciso abrir horizontes, falar outras línguas, respirar outro ar! É disso que Portugal precisa, outras perspectivas!”.
“A um artista não deve caber o trabalho de se dar a conhecer”
E o que “o que nos pode valer em momentos difíceis é a criatividade e, sobretudo, a comunicação”. Diz que “é preciso criar uma rede, pontes que liguem os artistas às belíssimas estruturas já existentes. Não há agências firmes em Portugal ainda”.
Por isso, se tivesse oportunidade, criaria, “sem dúvida, um modo de dar a conhecer os artistas portugueses aos responsáveis pela dinamização da cultura, assim como a potenciais mecenas, empresas e fundações. A falta de comunicação em Portugal é muito grande e grave!”
“O problema é que andamos todos à procura uns dos outros, e muitas vezes perdemo-nos nos meandros do medo. A um artista não deve caber o trabalho de se dar a conhecer, um bom país é aquele que cuida dos seus artistas abrindo-lhes as portas”, aponta.
“O artista faz-se no palco, temos palcos, faltam as pontes. Esta é uma questão política que ainda está por ser educada, mas eu acredito que tudo se educa. Creio que quando aparece a pessoa certa no lugar certo tudo brota, o terreno é muito fértil mas faltam ainda mais mãos para o semear devidamente, estão por vir … e virão”, defende.
“se encontro a música que me permite conhecer e alargar os meus limites, fico feliz”
As portas da soprano “estão a abrir-se” para novas aventuras no estrangeiro. O mesmo estrangeiro que a conhece de palcos como o Victoria Hall em Genebra, o Teatro Nacional de Kosice (Hungria) o Hebbel Theater (Berlim), a Catedral de Berlim ou a Chapelle de la Trinité de Lyon.
“Gosto muito de desafios, coisas difíceis e profundas, se encontro a música que me permite conhecer e alargar os meus limites, fico feliz”, explica. Com calma e respeito pelo tempo: “o importante é sentir que o caminho da autenticidade está aberto e que é nele que caminho, tudo o resto virá com o tempo”.
“é muito importante a consciência do corpo no canto, assim como sorrir”
O caminho é o da “libertação”, por isso, não se prende “a ideias nem a expectativas”: “Recebo a bênção de ter trabalho com profunda gratidão, tendo consciência que nada está acima do Amor. Somos muito maiores que as dificuldades; e na minha vida se elas existem são igualmente uma bênção, são elas a minha mais importante lição”.
Se não tem silêncio na sua vida, perde “a fonte da criatividade”. Com efeito, acha tão importante descansar como trabalhar: “Descanso o quanto possa, e quando trabalho, procuro fazê-lo de um modo intenso “.
Dicas, conselhos, confissões. Ana Maria Pinto revela que “é muito importante a consciência do corpo no canto, assim como sorrir”. Confessa ainda que lê e escreve bastante: “dou muita importância ao que vai dentro de mim. A verdade é que quanto mais conectada estou com a natureza, mais música me sinto”.