Gabriel e Ricardo Antão
É definitivamente um debate muito comum em meios musicais. Devemos ou não explorar literatura de outros instrumentos? E com que objetivo? Os argumentos da autenticidade e do dever de explorar (e difundir) a música especificamente escrita para o nosso instrumento são fortes, e que se opõem à experimentação de música por outros instrumentos. Porém, gostaríamos de evidenciar alguns argumentos que podem balancear o caso.
Tendo o eufónio uma História muito recente, e o trombone, apesar dos seus séculos de existência, raramente se ter colocado num papel solístico, nós enquanto instrumentistas de metal temos um interesse óbvio no Tema. Se é costume dizer-se que se aprende ao fazer, como devemos esperar que os alunos destes (e outros) instrumentos se familiarizem com repertório como o do período Barroco, por exemplo? E no caso de obras mais recentes, como abordaremos a música portuguesa do (início do) século XX sem recurso ao repertório de outros instrumentos? Deixar de o fazer por nos circunscrevermos apenas ao repertório do instrumento, privar-nos-á de conhecer repertório importante e que nos fará crescer enquanto músicos. Por outro lado, tocar música de outros instrumentos permite-nos focar na música sem os problemas e limitações técnicas, as quais são previstas nas composições originais para o nosso instrumento. Caberá por isso ao músico tentar ser o mais fiel possível às ideias do compositor, não desvirtuando a sua obra.
Naturalmente que isto implica investigar sobre os instrumentos sobre os quais tocamos, perceber as técnicas e escrita idiomática para melhor poder traduzir as ideias musicais do compositor para o nosso instrumento. Para estudantes que não tenham experiência neste âmbito, o papel do professor é da maior importância, ao explicar as especificidades de tocar música escrita para outros instrumentos.
Colocando mais uma evidência ao debate, uma parte significativa da música anterior ao período Clássico era escrita com a consciência de que seria tocada por diferentes instrumentos, consoante a disponibilidade em cada caso. Claramente a evolução técnica de cada instrumento e a crescente especialização dos músicos num determinado instrumento (ao contrário dos multi-instrumentalistas da época mencionada) tem tornado a composição mais exata e específica para cada instrumento, tornando menos exequível algumas transcrições, e a estreita colaboração desenvolvida entre compositores e intérpretes em tempos recentes mostra isso mesmo. Também por isso somos agraciados com muita nova e boa música para instrumentos como os nossos (de metal grave), que em séculos anteriores foram menos explorados pelos compositores em geral. Acreditamos que devemos dar a conhecer o novo repertório do nosso instrumento, mas também alargar o nosso conhecimento e desenvolver a nossa musicalidade com repertório de outros instrumentos.
Este debate cruza-se em certa medida com o da autenticidade musical. Muitas obras mais antigas foram escritas para outros instrumentos que não os modernos: Haydn escreveu várias obras para piano com instrumentos específicos em mente, chegando mesmo a referir instrumentos de determinados construtores para uma execução adequada das suas obras, como refere Peter Walls (2002) , mas partimos de um princípio generalizado que estamos a ser autênticos ao utilizar os nossos instrumentos de fabrico atual. Richard Taruskin (1995) é muito crítico do conceito de autenticidade e refere que hoje em dia este conceito é sobretudo relacionado com autenticidade histórica da performance, remetendo para a performance em instrumentos da época, tocados segundo os estilos que se acreditam ter sido adotados noutros tempos. Mas prossegue arguindo que nem mesmo nas convenções estilísticas da época existe consenso de autores, pelo que a performance em instrumentos de época pode ser a única que pode trazer alguma eventual autenticidade à performance. E mesmo a utilização destes pode nem sequer ser autêntica, pois os contextos sociais e culturais em que são utilizados podem ser muito diferentes dos pensados na época.
A questão da autenticidade, nos dias de hoje, parece ser um tema cada vez mais abordado e não parece haver consenso à vista. Contudo, decidimos ficar pela conclusão de Richard Taruskin (1995), que tão bem parece definir a questão: “But as long as we know what we do want and what we do not want, and act upon that knowledge, we have values and are not dirt. We have authenticity.” (p.151). Tal como Taruskin, acreditamos que uma performance informada, ponderada e bem intencionada é autêntica na integridade e honestidade com que pretende ser feita, e estes são valores que acreditamos serem essenciais ao fazer música.
Referências:
Taruskin, R. (1995). Text & Act – Essays on Music and Performance. New York: Oxford University Press.
Walls, P. (2002). Historical performance and the modern performer. Em J. Rink (Ed.), Musical Performance: a guide to understanding. Cambridge University Press.