Crítica Musical

"Caminos Andaluces” – CD de Sofia Lourenço

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Nuno Jacinto

  • "Caminos Andaluces” – CD de Sofia Lourenço

A ligação com um mestre é algo inexplicável por palavras. As horas intermináveis de estudo e aprimoramento da técnica de um instrumento musical são assoladas por episódios de desilusão, de obsessão, de vislumbre (fátuo), de revelação, de assombro e de tantos outros arrebatamentos da alma. Estes episódios só são verdadeiramente compreendidos por quem – de modo cautelosamente afastado - vivencia, com os seus conselhos sábios, estes momentos. A cumplicidade de um olhar ou de uma palavra dita no final de um recital é selo suficiente para marcar indelevelmente a vida e a carreira de um músico pelo seu professor, o seu mestre. Esta ligação umbilical, indescritível entre um mestre e um aprendiz, na arte alcançada por poucos na corporização metafísica de um instrumento musical como um igual, só é comparável com a ligação de alguém com a sua terra natal. As memórias desse lugar vivido depois fantasiado é perene na nossa identidade como pessoas com passado. Estas memórias, em momentos cimeiros da nossa vida, sobressaem como uma bóia de salvação de um mundo em constante esquecimento do antes, sempre com os olhos firmados no depois e no que há-de-vir, esse futuro inédito, sem paralelo e sem história.

 

É no atar destas duas linhas-mestras que encontramos o último trabalho discográfico da pianista Sofia Lourenço, portuense de raiz mas cidadã aberta ao mundo das invocações virtuosas entre confidentes de sonhos como de lugares semi-imaginados onde os sonhos vivem livremente e sem a crueldade dilacerante da vida real. O disco “Caminos Andaluces” (2024) é um luminoso contributo no indiscutível percurso brilhante da pianista, servindo tanto de homenagem à sua mestre e mentora, a pianista Helena Sá e Costa, como numa escolha pessoal de compositores ibéricos que no virar para o século XX, idealizaram musicalmente uma fantasiosa terra natal, largamente ampliada muito para além do verdadeiro berço nativo.

 

Na rica e portentosa discografia de Sofia Lourenço – verdadeiro testemunho da sua qualidade como pianista – “Caminos Andaluces” revela-se como uma tentadora proposta para qualquer melómano se submergir nas sensações de uma artista que não pretende executar obras canónicas de modo integral, mas sim uma escolha premeditada de andamentos que perscrutam a sua própria alma. São escolhas que são vertidas pelos dedos da Sofia Lourenço em momentos de puro intimismo para o ouvinte, num solilóquio singular e revelador do modo de pensar e de sentir desta pianista incontornável do panorama musical do norte do país. Ouvir este disco é, na essência, conversar com Sofia Lourenço sem dizer uma única palavra.

 

Porém, Sofia Lourenço não se inibe de executar integralmente um opus pianístico de eleição de um dos mais brilhantes compositores espanhóis do século XX, Manuel de Falla. “Cuatro Piezas Espanolas” são, por um lado um primeiro fôlego deste compositor em absorver uma aura perdida de uma Espanha imperial, com as suas danças típicas e geograficamente plurais, os seus ritmos torneantes e as suas melodias enfeitiçantes. Por outro lado, os quatro andamentos desta obra presente no final do disco são contidos, imbuídos em sonhos enevoados, fantasias distantes no tempo e na memória. É neste chamamento que Sofia Lourenço revela a sua grande qualidade como pianista: o toque interior do piano numa técnica de superior calibre, revela-nos a densidade escondida de cada uma das danças. A primeira dança “Aragonesa” por exemplo, andamento vivo dado a uma enorme velocidade e acentuações claramente enfáticas na métrica ternária da dança tradicional, Sofia Lourenço substitui estes pressupostos pelo destaque da melodia serpenteante e lamentosa da dança, moldando o andamento em função dos arabescos entre as duas mãos, desenhados como de uma guitarra acompanhadora se tratasse. No segundo andamento “Cubana” – a pianista mantem a postura melódica, mas aqui com mais arrojo e amplitude dinâmica, registando assim, o andamento mais bem conseguido desta obra de Falla. O terceiro andamento “Montanesa” é um andamento lento, mas cintilante, com fluentes mudanças métricas e episódios contrastantes de rara beleza e surpresa que Sofia Lourenço decidiu abarcar de modo solene e grave, deixando um registo bem conseguido mas algo díspar da partitura e das expectativas. A quarta dança “Andaluza” desta feita, parece ter ficado refém do ambiente do andamento anterior, pois foi pouco vigorosa e ladina na beleza e velocidade da dança andaluza que Falla quis encapsular neste andamento final.

 

Mas olhemos para o “elefante na sala”: não existe compositor espanhol – neste caso, catalão! – que tenha melhor respirado uma Espanha idílica e, consequentemente fermentado esta visão num conjunto formidável de danças em quatro volumes, do que Isaac Albéniz e a sua “Iberia”. Albéniz viveu em Paris a maior parte da sua vida por livre vontade, pelo que se torna no melhor exemplo de um autor musical que fantasia os sons típicos do seu país ao mesmo tempo que influi as mais recentes inovações à época, da composição musical. A apropriação do  novo estilo da música francesa do virar do século XX granjeiam ao compositor catalão uma monumental conquista para a música ibérica, colocando o nacionalismo espanhol no topo da vanguarda musical.

 

“Iberia” é uma obra tecnicamente muito exigente e o conjunto de “doze impressões” – como Albéniz as catalogou – são, sem margens para dúvidas, um opus riquíssimo e imprescindível a qualquer pianista de fôlego, e que Sofia Lourenço não se coíbe de nos presentear com três andamentos. Ah! E como Sofia Lourenço nos faz verdadeiramente sonhar, principalmente em dois dos três andamentos apresentados no disco: “Evocación” é o primeiro andamento do primeiro livro e é um verdadeiro “prelúdio”: um andamento introdutório de larga visão temática, onde Albéniz percorre o pais espanhol de lés a lés, voando no éter ao longo dos sons e dos ritmos das danças do norte e do sul. E como Sofia Lourenço consegue de maneira magistral fazer-nos abstrair do nosso tempo e espaço e fazer-nos voar conjuntamente com o compositor catalão, nas suas memórias nostálgicas. Tudo parece meticulosamente calculado na interpretação deste andamento: as respirações e pausas, o timbre alcançado pelo acompanhamento, a melodia sussurrante, mas na proporção certa de destaque, os pequenos arroubos de subida de dinâmica... subtilezas de enorme dificuldade técnica e artística que testemunha a pianista singularmente sensível e experiente que Sofia Lourenço é. Nesta proporção, também se destaca o primeiro andamento do terceiro livro – “El Albaincín” – um magistral andamento de apelo ao flamenco, entrecortando secções de dança ritmada com secções de copla melodiosa. Páginas inspiradas, mas ao alcance de poucos na necessidade premente de estabelecer interesse musical em todas as iterações destas secções. Sofia Lourenço não só consegue estabelecer este interesse como o amplia de modo soberbo: enleva cada citação com maior potência tímbrica do piano, mas sem nunca esgotar todas as possibilidades. Esta captação maravilhosa regista, mais uma vez, o brilhantismo da pianista portuense e o conforto de não recorrer à velocidade e ao peso bruto da escrita virtuosística para esconder as repetições...como tantos outros pianistas de renome internacional o fazem. Bravo, Sofia!

 

No nó final das duas linhas-mestras deste disco, Sofia Lourenço inclui uma peça invocadora de Helena Sá e Costa, notável pianista de renome internacional, marcante professora de piano e figura fundamental na cidade do Porto, na instalação da Escola Superior de Música e Artes do Espectáculo (ESMAE), onde Sofia Lourenço lecciona e dá continuidade à visão da sua mestre. Na invocação da relação poderosa e duradora de mestre-pupilo, a pianista apresenta-nos o compositor espanhol Ernesto Halffter. Halffter viveu algumas décadas em Portugal e promoveu a música espanhola em programas de rádio e concertos como maestro e compositor. Contou desta forma, com os melhores músicos portugueses para o fazer, como foi o caso da excelsa Helena Sá e Costa. É com uma pequena peça para piano, a “Danza de La Gitana” que Sofia Lourenço faz a devida homenagem à sua mestre, numa execução ponderada, plenos de rubatos e lirismo. A candura desta execução revela-nos uma jovem cigana dançante que conhece profundamente a sua tradição geracional para executar de maneira tão sábia e imperiosa a sua dança. Assim também é Sofia Lourenço, uma merecedora descendente de Helena Sá e Costa e de toda uma linhagem brilhante de pianistas que proporcionaram a este nosso país com uma tradição a preservar: a execução ao mais alto nível da transcendência artística, onde piano é uma arte ao alcance apenas daqueles que corporizam em si todos os contributos dos que vieram antes. Assim é, Sofia Lourenço.

 

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PS: o autor não reconhece o Acordo Ortográfico de 1990.
 

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