Nuno Jacinto
É com agrado que constato que nas últimas décadas tem existido um esforço - compassado mas concertado - entre artistas de excelência e instituições artísticas e governamentais para a publicação de partituras orquestrais e lançamento de trabalhos discográficos. Muito se deve à figura de Álvaro Cassuto, que num trabalho incansável de divulgação e recuperação, lançou-se na gravação de obras orquestrais de figuras incontornáveis do século XX como Luís de Freitas Branco e Joly Braga Santos, já nos idos anos 90. Outro legado importante de Cassuto está na divulgação desta nossa música além-fronteiras, junto de editoras discográficas internacionais de modo a provocar alguma sensibilidade no meio musical internacional dominado pelo repertório franco-germânico. O leitor melómano mais atento já com certeza constatou das edições do grupo editorial NAXOS (para além da editora homónima, contemos também com as sub-editoras Marco Polo, Capriccio ou Grand Piano) de música portuguesa recentemente gravada de Bomtempo, Arriaga, Freitas Branco, Braga Santos, Lopes-Graça ou de Vasco Mendonça e Luís Tinoco, por exemplo.
É neste contexto que o último trabalho discográfico de música portuguesa lançado na editora NAXOS Records ganha especial ímpeto: “Divertimento, Sinfonieta de Fernando Lopes-Graça” (NAXOS 8.574373) com o Orquestra Sinfónica Portuguesa e Bruno Borralhinho no seu leme, é um ponto alto deste esforço, juntando-se a uma discografia já considerável neste grupo editorial, de divulgação da música portuguesa para piano, de câmara e orquestral portuguesas. Bruno Borralhinho, talentosíssimo violoncelista e incansável fomentador da boa música portuguesa (releve-se o anterior trabalho discográfico de 2016 na Naxos Records: “Portuguese Music for Cello and Orchestra” com a Orquestra Gulbenkian e o maestro Pedro Neves) convoca-nos para um novo disco, desta vez apenas figurando a música intratavelmente consistente – mas também estilisticamente múltipla – de Fernando Lopes-Graça.
Fernando Lopes-Graça dispensa grandes apresentações, pois a sua contribuição para a luta anti-fascista e a sua pesquisa etno-musicológica da tradição popular proporciona-lhe espaço inegável na história geral do nosso país. Porém, a sua Música - à excepção da música coral (principalmente a baseada em música tradicional portuguesa), alguma música para piano e o seu Requiem pelas Vítimas do Fascismo - é pouco conhecida do público. Por outro lado, de Lopes-Graça temos a felicidade de um enorme legado literário, jornalístico e de crítica sobre Música (e não só...) que nos poderá iludir numa visão de um compositor de convicções estéticas estanques. Nada mais incorrecto. Lopes-Graça é de facto um exemplo do seu tempo – ou como o próprio diria, um “produto duma equação entre o artista e o seu meio” (in “Vértice” de 1945) – múltiplo, convicto mas sempre auto-questionador da sua postura artística, portador de conflitos internos constantes e esteticamente metamorfoseantes da sua produção musical ao longo da vida.
Este trabalho discográfico apresenta-se como um exemplo cronológico demonstrativo da riqueza estilística de Fernando Lopes-Graça que, ao longo da sua carreira e a certo ponto arredado das grandes orquestras nacionais, compôs variada música para formações orquestrais mais concisas.
Os “Cinco Velhos Romances Portugueses” op.98 para pequena orquestra é um tesouro musical da capacidade inata de Lopes-Graça de formular variações sobre um material simples e aparentemente desprovido de substância musical. Cada um dos cinco curtos andamentos exploram exclusivamente a melodia do romance destacado, delimitando austeramente a composição, mas potenciando genialmente as várias fórmulas combinatórias de orquestração. Esta escolha resulta numa enorme fruição musical, onde o ouvinte é convidado a escutar contrastantes construções de harmonia, carácter e textura.
A gravação aqui em estreia absoluta é especialmente bem conseguida neste campo no segundo e quinto andamentos: no Romance da Santa Catarina, o ambiente claramente trágico é melancolicamente retratado por um belo solo de clarinete como também na explosão dramática e quente dos naipes das cordas no seu tutti e nas consequentes evoluções dissonantes que desintegram a melodia nos seus passos terminais. O Romance de Santa Iria, num recorte mais dançante e ingénuo, põe à prova a capacidade de cada secção da orquestra - que não se acanhou nem por um momento - pois Lopes-Graça desfaz a melodia em pequenos devaneios instrumentais até o apogeu do acorde final. O primeiro e terceiro andamentos (Romance de Dona Silvana e Romance de Dona Infanta) relevam a qualidade das secções de metais e madeiras da Orquestra Sinfónica Portuguesa em igual proporção. O quarto andamento (Romance de Dona Ângela) contradiz o sentimento geral da gravação de claras camadas texturais, pois o distinto solo inicial do oboé é ofuscado pelo acompanhamento das cordas, desequilíbrio já parcialmente sentido no primeiro andamento.
O Divertimento op. 107 para instrumentos de sopro, bateria, tímpanos e cordas graves é um exemplo de repertório que tem vindo a crescer em popularidade, não só pela instrumentação mas também pelo número de curtos andamentos característicos (sete!) que a obra contempla. As cambiantes métricas e a construção fragmentada das secções contrastantes denunciam a influência clara de Stravinsky, mas não nos enganemos: o cunho melódico folcloricamente imaginado e a satírica ambiência transpiram Lopes-Graça, especialmente no forjar irónico de quadros bucólicos e cenários idilicamente contemplativos. A gravação é excepcional na captura destas nuances – mais uma vez nos ombros dos metais e madeiras – com especial destaque do “Recreio Campestre” e “Intermezzo”: no primeiro caso, releva-se o jogo calibrado de camadas tímbricas e as assumidas quebras constantes do percurso melódico com intervenção límpida de cada novo instrumento; no segundo caso, é a textura rarefeita e reveladora de cada instrumento melódico (dos sopros ao solo de violoncelo) que nos comprova a qualidade técnica e artística dos músicos integrantes da Orquestra Sinfónica Portuguesa. “Fandango” – andamento genialmente mordaz e sarcástico – é menos conseguido nesta gravação no sentido em que algumas passagens não são tão brilhantes, principalmente quando alimentadas com velocidade e com cromatismos mais tortuosos. Os andamentos lentos podem ser considerados como mais difíceis de executar, especialmente com a instrumentação desta peça. Erro crasso: estes andamentos são deliciosos neste disco, na sua candura e fragilidade inerente aos instrumentos que os suportam. “Coral” constrói uma devida homenagem ao cante alentejano, com melodias paralelas de crescente encantamento e lirismo enternecedor. “Écloga”, andamento denunciador de um ambiente bucólico e antigo, busca nos oboés iniciais como no solo de flautas na secção intermédia, uma sonoridade mais arcaica e ao mesmo tempo idílica, quase sonhadora. Características sonoras e idiomáticas que a Orquestra Sinfónica Portuguesa e o seu maestro, Bruno Borralhinho, capturam na perfeição.
De todas as peças reunidas neste trabalho discográfico, a “Sinfonieta – Homenagem a Haydn” op. 220 de 1980 é provavelmente a mais conhecida e tocada. Escrita para formação de orquestra clássica tradicional e organizada em quatro andamentos tipificados na fórmula clássica haydniana de Allegro-Lento-Menuetto-Allegro, são estas as únicas claras similitudes com o mestre vienense homenageado.
Fernando Lopes-Graça é um compositor de enorme imaginação e sem nunca se lançar num estilo neo-clássico, presta homenagem ao passado ironizando, satirizando e provocando no ouvinte uma sensação de vórtex auditivo, de confluências turbulentas (mas incisivas) entre estilizado clássico com o moderno disruptivo. E como sentimos a Orquestra Sinfónica Portuguesa inteiramente confortável e jubilosa em todos os grandes momentos desta obra cimeira da produção orquestral de Lopes-Graça! Uma gravação de referência, com especial destaque para o segundo e terceiros andamentos. O andamento lento (Andante – Piú Mosso – Lento) demonstra um reconfortante equilíbrio entre os pares de sopros intervenientes e os naipes de cordas, ao mesmo tempo que apresenta uma homogeneidade sonora quente e harmoniosa. O famoso terceiro andamento ladino (Gaio) embora ligeiramente mais lento que outras interpretações (refiro-me por exemplo, a uma gravação ao vivo em 2000 da então Orquestra Nacional do Porto) é, mesmo assim, mais acutilante nas mudanças de tempo e carácter encontradas aqui, aliando exuberância endiabrada com uma cerimonialidade bajuladora (e trocista!) de uma sinfonia de Haydn. Bravo!
Como encore deste disco orquestral, nada melhor que... uma peça para violoncelo solo! Bruno Borralhinho não se coíbe e regala-nos com as Quatro Invenções, onde o músico pode comprovar sua mestria no instrumento. Lopes-Graça compôs estas peças em 1961 como exemplos de novas técnicas composicionais aliadas a uma reformulação linguística menos dependente de pólos tonais, algo que o compositor vinha experimentando intermitentemente ao longo da sua carreira. O resultado verifica-se em quatro andamentos “inventivos” de difícil execução mas de enorme fruição para o ouvinte que assiste à proeza virtuosa de execução destas peças. Ah! E como Bruno Borralhinho nos conquista com o seu desembaraço: a execução infalível dos saltos rápidos de registo na primeira invenção, a admirável languidez melódica de olímpica extensão a todo o registo do instrumento na segunda invenção; a incessante articulação em golpe de arco em dificílimas passagens arpejadas da terceira invenção, e por fim, as monstruosas e tortuosas notas dobradas da invenção final.
Este trabalho discográfico é um brilhante exemplo do que falta para revitalizar definitivamente Fernando Lopes Graça nas salas de orquestra: Bruno Borralhinho soube promover com profundidade artística, sensibilidade editorial e direcção límpida, a produção criativa esquecida de um dos maiores compositores portugueses do século XX. O trabalho preliminar também não é de somenos importância: Borralhinho reviu todas as partituras deste disco (à excepção do Divertimento) num trabalho musicológico indispensável e que está a todos acessível na AVA Musical Editions. Uma saudação especial de apreço à Orquestra Sinfónica Portuguesa que apesar da sua sinuosa história, tem sabido manter um nível de excelência dos seus músicos, bem patente nos vários momentos exigentes deste disco.
Precisamos de mais propostas discográficas de desafio ao domínio musical do repertório franco-germânico e todos os esforços para promoção da música portuguesa além-fronteiras são sempre insignificantes se não forem mantidos abnegadamente, ano após ano. Continuemos!
Julho/Agosto 2023
O autor não reconhece o Acordo Ortográfico de 1990.