Nuno Jacinto
Durante muito tempo, a música europeia de legado ocidental foi dominada por estados (não será ainda?) que, para além de uma preponderância clara em vários domínios da cultura europeia, estabeleceram dogmas de estilização da arte do seu tempo, promovendo o seu domínio muito para além das suas fronteiras. Não é por acaso que o repertório canónico de qualquer concerto de música dita clássica (ou erudita, detesto ambos os termos) é sempre de origem germânica, francesa ou italiana. Com raras excepções ao repertório de firmados compositores de origem inglesa ou espanhola, os programas de música regem-se por estes vértices geográficos e os seus maiores representantes. As razões são múltiplas que não vale a pena aqui desfiar, mas uma razão destaca-se acima de todas: o estatuto e promoção da Arte (não da Cultura, coisa bastante diferente e que neste país confunde-se conscientemente) é equivalente à auto-estima do seu estado e por conseguinte, do seu povo. Facto que Portugal, em tantos séculos de fronteiras definidas, nunca conseguiu incorporar na sua psique colectiva.
Portugal, como outros países europeus, viram assim o seu repertório e o seus compositores relegados a uma espécie de arena privada de segunda categoria, onde cada esforço criativo empreendido determinava dois resultados: indiferença e desvalorização ou reconhecimento fugaz e consequente subalternidade comparativa. O leitor poderá suspeitar que o primeiro resultado é de pior impacto, mas tenderei a discordar: subalternizar um compositor em comparação a outro de “primeira categoria” é das mais reles perfídias que se pode provocar a uma mente criativa. Catalogar um compositor das margens do cânone musical como uma cópia de um autor de primeira linha é estimular a segregação de repertório e alimentar discursivamente, uma hierarquia dominante. E o pior é que isto acontece entre nós... Assim sendo, é refrescante travar conhecimento com um trabalho discográfico de um agrupamento de câmara português com principal foco está no [re]descobrimento de obras e compositores de origem suíça – um país secundário no meio musical e entrincheirado no centro dos principais pólos geográficos do cânone musical. “Swiss Treasures” (Tesouros Suíços da editora Prospero Classical, Suíça) gravada pelo Art’Ventus Quintet assume de maneira valente esta dupla subalternidade, apelando ao melómano um redobrado impulso de curiosidade.
Este é o primeiro trabalho discográfico do Art’Ventus, que podia muito facilmente lançar-se no repertório canónico da formação clássica de quinteto de madeiras, provavelmente granjeando mais visibilidade mediática e atenção dos programadores culturais... Mas de sardinha, a lota já está cheia. Esta vontade inesperada do Art’Ventus Quintet de aprofundar o repertório marginal para a formação clássica de quinteto de madeiras só pode ser explicada pela constituição do agrupamento com músicos portugueses com provas dadas tanto no plano nacional como no internacional: Paula Soares na Flauta Transversal, Tiago Coimbra no oboé, Horácio Ferreira no Clarinete, Nuno Vaz na Trompa e Raquel Saraiva no Fagote. Só em músicos experientes e seguros de si que podemos ansiar lançamentos frescos, acutilantes e audazes. É claramente o caso. Este trabalho discográfico assim, apresenta quatro obras para quinteto de madeiras de compositores helvéticos de século XX de posturas musicais inteiramente diferenciadas, sendo duas delas estreias mundiais em gravação, precisamente as primeiras do disco.
Em primeiro lugar, temos o Bläserquintett (Quinteto de Madeiras) de Peter Mieg. Datada de 1977, esta obra não se apresenta como um exemplo das vanguardas da altura, bem pelo contrário: a escrita é claramente neo-clássica (como o próprio compositor se definia, aliás), numa escrita naïve e fresca de influências francesas, país onde o compositor passou largas temporadas e desenvolveu uma afinidade especial todos os aspectos da cultura francesa. Jornalista de carreira, com uma cultura refinada e cosmopolita e destacado pintor de aguarelas, privou e correspondeu-se com várias figuras das artes e intelectuais do seu tempo, embora sem nunca se convencer na aventura de partir em maiores devaneios linguísticos na sua criação musical. A música é, consequentemente, intencionalmente desprovida de grandes novidades, embora com momentos bem pintados por uma fluidez musical constante. O Art’Ventus Quintet apresenta um aqui um trabalho aprofundado de exaltação das passagens mais claramente coloridas, como o memorável momento do primeiro andamento (Allegro): após a introdução diatónica, a flauta desparece do discurso musical, algo notório na sonoridade do andamento. Eis que, após este interregno, a flauta de Paula Soares entra fulminantemente no registo agudo, revelando-nos uma emotiva passagem de para todo o quinteto, explosiva em intensidade e dramatismo e dissolvendo-se num reconfortante solo de Horácio Ferreira no clarinete. Só uma amostra do que ainda está por vir.
Numa linguagem musical bem mais solene e confessional embora mais sombria e atrevida, encontramos a segunda obra do disco em estreia mundial de gravação, o Adagio e Scherzino do dual Paul Huber. Por um lado, era católico devoto, pela formação feita em colégios religiosos (e mais tarde no Conservatório de Zurique) que o encaminham para um percurso dentro do meio da música sacra, compondo centenas de obras corais e vocais religiosas ao longo da sua reconhecida carreira em todos os cantões suíços. Por outro lado, o compositor tocou eufónio principalmente durante o seu serviço militar, levando-o confortavelmente a compor música para sopros e ensembles constituintes. É neste cruzamento biográfico que encontramos esta obra: datada de 1963, o Adagio e Scherzino é uma agradável encruzilhada de influências anacrónicas, da tradição musical romântica à modalidade moderna, da solenidade de sonoridades abertas antigas à sumptuosidade dos movimentos harmónicos mais ritmicamente assinalados por ostinatos insistentes. Assim, a sonoridade entre os cinco instrumentos do Art’Ventus Quintet brilham luminosamente numa acústica particularmente reverberante (a gravação foi feita na Igreja dos Grilos, no Porto) no Adagio: a composição harmónica do andamento com insistência em ostinatos típica de uma escrita organística revela-se confortável nas palhetas e com um resultado luminoso e de especial impacto. Sem dúvida, um dos pontos altos do disco.
Porém, uma acústica reverberante nem sempre é elogiosa em todos os tipos de obras, como acontece com a obra seguinte, do conhecido compositor nascido na Rússia, mas de ascendência suíça, Paul Juon. Sendo o compositor mais antigo dos quatro presentes no trabalho discográfico, também é aquele que granjeia maior popularidade fora da federação suíça: estudou no final de século XIX em Moscovo com os incontornáveis mestres Arensky e Taneyev, levando estes ensinamentos para Berlim, onde torna-se num reputado professor de novas gerações de compositores até à década de 30. É nesta fase (1928) que compõe o seu “Quintett” op.84 (Quinteto). Em três andamentos tradicionalmente organizados (Allegro – Larghetto – Allegro Molto), a música é viva, ritmicamente recortada e ricamente formada por motivos curtos, dissonantes e acentuados, sendo elogiosos à acutilância tímbrica dos instrumentos do quinteto. Consequentemente, a gravação num ambiente tão reverberante retira esta característica endémica da obra, tanto no primeiro como no terceiro andamentos, tornando as intervenções confusas e por vezes, com uma intensidade dinâmica pouco agradável ao ouvido. O segundo andamento, porém, ganha algum alívio nos frequentes solos melismáticos que superam a reverberação, como pelo cuidado consciente e assinalável do Art’Ventus Quintet em deixar respirar o eco de cada secção terminada.
A última obra do disco é, porventura, a mais empolgante e memorável para o ouvinte: o Divertimento for Wind Quintet op.69 (Quinteto para Quinteto de Sopros) de Gion Antoni Derungs é um excelente exemplo de modernidade bem doseada em paliativos de sarcasmo, dissonância rítmica e melancolia dramática. Com uma actividade como organista, professor e compositor, Derungs desde cedo alimentou consistentemente um idioma musical próprio, numa ambivalência atraente entre a tradição e a inovação. Em cinco curtos andamentos, esta obra reformula a ideia de uma sucessão de danças estilizadas com uma exploração fenomenal do quinteto em ambientes texturais desafiadores. E como o Art’Ventus Quintet explora de forma magistral cada andamento, munido de um domínio técnico ímpar nesta gravação: oiçamos o arsenal de técnicas estendidas perfeitamente calibrado em discurso harmónico no segundo andamento (Intermezzo), reparemos no cuidado extremo de afinação de uma dificílima textura rarefeita como aquela presente no quarto andamento (Serenata), seguremos a nossa respiração perante um quinto andamento frenético (Perpetuum Mobile) de acintosa pulsação com um inesquecível solo em baixo articulado da fagote da Raquel Saraiva e por fim, dancemos no terceiro andamento (Valzer) na candura irónica de uma valsa bípede entre o clarinete do Horácio Ferreira e mais uma vez, do fagote da Raquel Saraiva! Bravo!
O primeiro trabalho discográfico do Art’Ventus Quintet é, sem margens para dúvidas, um retumbante sucesso face aos desafios aos que se lançou: ser por um lado, um disco inaudito, inovador e rebelde ao repertório canónico revelando um conjunto de obras diferenciadas estilisticamente, mas com qualidade inquestionável da composição na federação helvética; por outro lado, lançar o nome do agrupamento para o firmamento das recentes formações de câmara que necessitam apenas de tempo para se tornarem representantes intocáveis da cultura europeia. E são portugueses!
Outubro 2023
O autor não reconhece o Acordo Ortográfico de 1990.