Coluna mensal sobre o mundo da tal música que é clássica para uns e erudita para outros. Assuntos de abundante subjetividade e, por vezes, pouco isentos de polémica. Daqueles sobre os quais todos os músicos conversam e discutem, mas nunca chegam a conclusões cabais. Daqueles que permitem saciar a curiosidade do público entusiasta e, já agora, construir pontes e viadutos comunicacionais entre o palco e a plateia. E para que ninguém ouse levar os temas pouco a sério, as variações serão comentadas e discutidas em exclusivo com alguns dos melhores músicos do planeta.
Sobre as mulheres na música
Convidada especial: Tabea Zimmermann
Tabea Zimmermann é uma das artistas mais reconhecidas e respeitadas do nosso tempo. Venceu primeiros prémios no Concurso Internacional de Genebra (1982), no Concurso Maurice Vieux em Paris (1983) e no Concurso Internacional de Budapeste (1984), entre muitos outros galardões. Internacionalmente reconhecida como uma das principais solistas e músicos de câmara do mundo, a sua gravação das obras completas de Hindemith para viola foi altamente aclamada. Após ocupar cargos semelhantes em Saarbrücken e Frankfurt, Tabea Zimmermann é professora na Hochschule für Musik Hanns Eisler em Berlim desde 2002.
Fanny Mendelssohn, Clara Schumann, Rebecca Clarke, Lili Boulanger e Maria Callas, entre muitas outras extraordinárias mulheres que a História de Música perpetuou são, ainda assim, casos excecionais e sobretudo minoritários, se considerarmos os contextos sociais dos séculos passados em que o talento masculino teve imensamente mais possibilidades e oportunidades para se revelar e estabelecer. Quantas fantásticas mulheres não terão ficado na sombra – algumas delas têm sido redescobertas apenas nas últimas décadas – pelo simples facto de serem mulheres? Os prejuízos são incalculáveis. Em pleno século XXI, o mundo continua a transformar-se a grande velocidade, talvez mais rápido do que nunca, e muito se tem avançado em relação à igualdade, paridade e conceitos afins, também no mundo da música erudita. Até há pouco mais de vinte anos, era normal ver e ouvir o tradicional concerto de Ano Novo com uma Filarmónica de Viena composta unicamente por homens. No presente, já há orquestras (poucas) com uma maioria de mulheres. Em que ponto estamos e para onde vamos?
Um texto como o presente é com certeza infinitamente curto para analisar um tema tão importante e abrangente, com tantas e tão delicadas dimensões e variantes. Para sustentar algumas reflexões pertinentes, pedi ajuda a uma das mulheres mais respeitadas e consagradas do panorama musical atual: a violetista Tabea Zimmermann. «Não acho que as mulheres tenham, em geral, mais facilidades ou dificuldades do que os homens», afirma, em resposta à minha pergunta sobre a igualdade de oportunidades no presente. O contexto é certamente diferente daquele que se vivia há cerca de 40 anos, quando iniciou a sua carreira internacional, mas sublinha que logo quando chegou à Universidade, foi tratada como todos os outros e nunca sofreu qualquer tipo de preconceito. Lembra ainda assim um episódio em que o diretor da sua escola secundária alegou que concluir o ensino médio «não era tão importante para as meninas»...
Com grande experiência pedagógica e ex-alunos espalhados um pouco por todo o planeta, Tabea Zimmermann lembra que a diferença mais relevante entre uma aluna e um aluno, é que «ambos devem superar as dificuldades específicas e comuns em momentos diferentes». Sublinha que todos possuem um «perfil e potencial distinto» e que «elevar as facetas individuais» é positivo e essencial, «desde que isso não se torne mais importante do que as próprias obras-primas musicais».
Tabea Zimmermann foi artista residente do Concertgebouw de Amesterdão na temporada 2019-2020 e na Filarmónica de Berlim em 2020-2021. Recentemente, foi-lhe atribuído o Prémio de Música Ernst von Siemens, um galardão que distingue anualmente as mais importantes personalidades do universo clássico: a lista de 47 premiados desde a criação do prémio em 1974 inclui Britten, Karajan, Bernstein, Ligeti, Abbado, Barenboim e muitos outros... mas poucas outras. Tabea Zimmermann foi apenas a terceira mulher a receber tal distinção. Atrevo-me a perguntar-lhe se acha que estes extraordinários reconhecimentos – incluindo as residências artísticas em Amesterdão e em Berlim – poderiam ter acontecido antes, se fosse homem. Ou se acha que uma mulher tem que dar 120% para poder chegar ao topo. Zimmermann responde com modéstia: «Encaro os títulos e prémios mencionados como o ponto mais alto da minha carreira e agradeço por não ter sido confrontado com eles antes!» Por outro lado, frisa que uma mulher está habitualmente sujeita a uma «pressão constante para equilibrar as tarefas de mãe e de músico» e que, se fosse homem, em certas etapas «certamente não teria recebido tantos conselhos e insinuações para "travar a fundo"» na sua vida profissional.
Regressando ao papel da mulher no contexto orquestral e de que forma uma orquestra se transforma à medida que a mulher conquista mais protagonismo e incidência, Zimmermann insiste na natureza feminina e materna, características que, na prática, considera indissociáveis da profissão musical. Tendo também em conta que «as condições de trabalho são agora frequentemente regulamentadas para que seja mais fácil conciliar trabalho e família», a sua principal motivação é «transportar o ponto de vista feminino e materno para a música e transportar a escuta e a sintonia para a família». A mesma lógica aplica-se certamente também a grupos de câmara estáveis ou a corpos docentes de academias e universidades de música um pouco por todo o mundo, onde a presença feminina é cada vez mais notada e apreciada. Em suficiente proporção em relação à presença masculina? É legítimo e justo impor cotas de paridade? Questões complexas e extremamente dependentes do contexto geográfico, social e político em que se colocam.
Olhando para o mercado musical à escala global, é igualmente notória a expansão feminina em praticamente todos os setores e subsetores. Mas nem tudo são rosas, sobretudo quando sai à luz que algumas orquestras colocam como critério primordial na escolha do/a próximo/a diretor/a titular que este/a deve obrigatoriamente ser uma mulher, excluindo à partida todo e qualquer candidato masculino. Claro que cada um é livre de escolher como bem entender, desde que não se cometam ilegalidades. Mas não seria importante manter a qualidade no topo das prioridades?
No mesmo mercado musical global, é impossível não notar ainda uma crescente utilização da imagem feminina, por vezes a roçar o sexismo ou assumidamente sexista – também há casos masculinos, mas muito poucos. Em geral e felizmente, a música erudita ainda está, neste tópico, a anos-luz do nível sexista de setores musicais como o Rap ou o Hip Hop e é oportuno denunciar que a responsabilidade recai tanto sobre os organizadores, como sobre o público ou sobre as/os próprias/os solistas que pretendem vender a sua imagem sem grandes preconceitos. No meio de tudo isto, onde fica a música? Há uma instrumentalização deliberada das mulheres? Ou da própria música? Tabea Zimmermann sublinha que «vivemos numa época que enfatiza de tal forma o indivíduo, que se tornou muito difícil para os jovens músicos encontrar um lugar próprio». Não é estranho, portanto, que alguns músicos padeçam mais da tal doença de ser notado, adorado, famoso, diferente, especial... «Cada indivíduo deve descobrir por si mesmo o que acha que é certo, enriquecedor e pelo que vale a pena lutar. Infelizmente, por vezes trata-se mais de negócio do que de música, e é exatamente isso que lamento e acho constrangedor», lamenta Tabea Zimmermann.
Estas e outras questões abordadas neste texto, ou outras mais cujo formato não possibilita abordar, certamente ganham dimensões distintas segundo o continente, o país ou a cidade a que nos referimos. As constatações e opiniões também serão diversas e oscilantes, por vezes até completamente opostas. Certo é que as particularidades e especificidades de ser mulher ou homem, ainda procuram o equilíbrio ideal na sociedade em geral e no mundo da música em concreto. As últimas décadas permitiram importantes conquistas, mais equilíbrio e justiça, mas o caminho pela frente ainda é longo.
Bruno Borralhinho
Número 5 | Julho de 2021