Coluna mensal sobre o mundo da tal música que é clássica para uns e erudita para outros. Assuntos de abundante subjetividade e, por vezes, pouco isentos de polémica. Daqueles sobre os quais todos os músicos conversam e discutem, mas nunca chegam a conclusões cabais. Daqueles que permitem saciar a curiosidade do público entusiasta e, já agora, construir pontes e viadutos comunicacionais entre o palco e a plateia. E para que ninguém ouse levar os temas pouco a sério, as variações serão comentadas e discutidas em exclusivo com alguns dos melhores músicos do planeta.
(A)tonalidade
Convidada Especial: Sofia Gubaidulina
Sofia Gubaidulina é uma das maiores compositoras da atualidade e de sempre. Nascida na antiga União Soviética, a modernidade da sua música enfrentou desde muito cedo sérios obstáculos no regime, mas também importantes incentivos de personalidades como Dmitri Shostakovich. Adorada pelos principais festivais, orquestras e intérpretes por todo o mundo, é detentora de dezenas de prémios e distinções internacionais. Cumpriu 90 anos de idade há poucos dias e vive na Alemanha.
Os compositores nunca tiveram uma vida fácil neste intrincado mundo da música dita clássica. Criar é um dom ao alcance de muitos, mas a História da Música só reconhece mérito a alguns, a uns mais do que a outros, a muitos apenas tardiamente. E quem sabe, quantos compositores do passado e do presente não estarão ainda por descobrir e por valorizar, tornando o tema ainda mais empolgante e, por vezes, roçando até uma certa mistificação nessa procura quase infinita da genialidade.
No presente, tudo é mais tangível, qualificável e quantificável, e há poucos segredos por desvendar ou que não sejam desvendáveis ao virar da esquina. Quem se decide pela vida de compositor, enfrenta mais que nunca o dilema da originalidade, como se de uma condição inalienável da criatividade se tratasse. Ou queremos ouvir uma coisa completamente nova, ou desejamos poder entender o que ouvimos, ou ambas. Como se tal fosse possível... ou talvez seja?
Para trocar algumas ideias – certamente escassas num mar imenso de noções, conceitos e perspetivas – sobre criatividade e composição musical, tenho o privilégio de contar com uma das mais importantes personalidades do mundo da música de hoje e de todos os tempos: a compositora russa Sofia Gubaidulina. Nascida há nove décadas em Chistopol, na região do Tartaristão, a sua música caracteriza-se, nomeadamente, pela combinação de elementos vanguardistas com a própria música tonal. À minha pergunta se essa característica é uma decisão intencional e ponderada, ou antes um impulso natural do processo criativo pessoal, Gubaidulina responde categoricamente que não se trata de uma escolha consciente. «É uma necessidade: a necessidade de viver no espaço que me foi dado pelo meu destino. Penso que os elementos de vanguarda que se utilizam ativamente nos séculos XX e XXI são o resultado dum processo natural da vida e do próprio espaço sonoro. Há uma procura natural de expandir os limites desse espaço e de aproveitar as oportunidades que se abrem para penetrar nos segredos da matéria sonora.»
Num panorama musical que desde há décadas adotou a atonalidade como requisito quase essencial na busca da originalidade, Gubaidulina considera o sistema tonal «um grande obstáculo» que, no entanto, «também deu à arte da música condições férteis». A tonalidade «combinou em si duas aspirações opostas do tecido sonoro» garantindo, por um lado, a «pluralidade e variedade de formas» e, por outro, «limitando essa aspiração com a ciclicidade e o retorno eterno ao regime das quartas e das quintas perfeitas». «Infelizmente, com o tempo, qualquer sistema passa por um processo de endurecimento, ossificação, petrificação e fossilização. E é nesse tempo que vivemos em relação à tonalidade.»
Sobre um suposto diferendo entre a tonalidade e a atonalidade, Gubaidulina desdramatiza porque representam «duas aspirações opostas», é certo, mas equivalentes às aspirações mais ambíguas da natureza humana: «o infinito e o estado final e completo». No fundo, «só sabemos com certeza que o som que ouvimos é baseado em algo estável e imutável, e que é uma determinada quantidade de flutuações numa determinada unidade de tempo». Tudo o resto é intuição e inspiração apoiada neste alicerce inalterável e eterno. «Eterno, mas com a devida resignação, visto que um dia o Anjo anunciará o fim do tempo.»
Gubaidulina confessa que sentiu sempre a «aproximação de um ponto de inflexão» e que o sente agora, mais do que nunca, porque «esse momento se aproxima impiedosamente». Mas sublinha também que é nos momentos críticos e difíceis que se torna «especialmente importante manter um ponto de apoio». Por isso, e apesar do recurso evidente à atonalidade, considera «necessário preservar o valor do tom fundamental da série harmónica, que revela em si tanto a força de expansão como a força de atração». A música e a vida, como sempre, inseparáveis.
Quando tento explorar ou compreender uma obra musical, tento em primeiro lugar perceber se a mesma é um reflexo do que é ou do que foi o compositor, ou se, por outro lado, é um sinal do que o compositor gostaria de ser ou de ter sido. Os exemplos e casos das vicissitudes do processo criativo musical ao longo dos tempos são vastos, multiformes e variados. A própria Sofia Gubaidulina sofreu, por exemplo, na pele a asfixia criativa fomentada pela pressão política da União Soviética nos anos 60 e 70: «prejudicou significativamente a minha atividade e o meu próprio desenvolvimento enquanto compositora». Por outro lado, terá sido possível aos nossos adorados Mozarts e Schuberts ou será possível na indústria musical atual preservar a independência e a integridade criativa fugindo à tentação de compor algo que satisfaça as pretensões e expectativas de quem encomenda a obra ou do público que a vai ouvir? Gubaidulina sublinha a importância de preservar essa independência e integridade criativa, mas reconhece que, no seu caso, apesar de ter sempre algum receio sobre a forma como as suas novas composições serão recebidas pelo público ou pela crítica, esse receio «não tem um impacto relevante» no seu processo criativo pessoal. «Para mim, sem qualquer dúvida, o mais importante é a atitude de quem transmite a minha música.»
Bruno Borralhinho
Novembro de 2021