Bruno Borralhinho
Coluna mensal sobre o mundo da tal música que é clássica para uns e erudita para outros. Assuntos de abundante subjetividade e, por vezes, pouco isentos de polémica. Daqueles sobre os quais todos os músicos conversam e discutem, mas nunca chegam a conclusões cabais. Daqueles que permitem saciar a curiosidade do público entusiasta e, já agora, construir pontes e viadutos comunicacionais entre o palco e a plateia. E para que ninguém ouse levar os temas pouco a sério, as variações serão comentadas e discutidas em exclusivo com alguns dos melhores músicos do planeta.
Música antiga: vocação e devoção
Convidado Especial: Jordi Savall
O gambista e maestro Jordi Savall é uma referência incontornável da música antiga. Fundador dos agrupamentos Hespèrion XXI (1974), La Capella Reial de Catalunya (1987) e Le Concert des Nations (1989), e do selo discográfico AliaVox (1998), gravou mais de 200 discos, dos quais se venderam mais de 2 milhões de exemplares em todo o mundo. Amplamente premiado e distinguido ao longo da carreira, entre outros com o título de Doutor Honoris Causa pelas Universidades de Évora, Barcelona Leuven e Basel, foi nomeado Artista para a Paz da UNESCO em 2008.
Apesar de o utilizar de forma habitual, sempre considerei o termo música antiga algo dúbio e inconclusivo, tendo em conta que este se refere comummente à música vocal e/ou instrumental do Barroco, do Renascimento e até da Idade Média. Fará sentido excluir deste âmbito por exemplo a interessantíssima gravação do Requiem de Mozart com a Akademie für Alte Musik e o Coro da Bayerischer Rundfunk (BR-Klassik, 2020) ou as cativantes gravações de sinfonias de Haydn com Il Giardino Armonico (Alpha)? Ou, caso estejamos a pensar por exemplo no uso de instrumentos históricos, não será legítimo que qualquer especialista reivindique que as cordas de tripa continuaram a ser utilizadas pela generalidade de instrumentistas até ao século XX, que apenas se começou a tocar violoncelo com espigão no início do século XIX ou que Johannes Brahms preferia ouvir as suas sinfonias ou o famoso Trio op. 40 tocados com trompa natural? Aliás, convém não esquecer que uma das últimas obras-primas em que o compositor escreveu especificamente para trompa natural foi a Pavane pour une infante défunte de Maurice Ravel, na versão para orquestra datada de... 1910.
Tentando colocar de lado a tal ambiguidade do termo e confessando desde já a minha grande admiração pessoal (certamente herdada da mesma paixão de alguns dos meus primeiros professores) pela música de Machaut, Palestrina, Bach e seus contemporâneos, é curioso que, por vezes, parece considerar-se o âmbito da música antiga como um mundo à parte: ou se ostenta a bandeira da "interpretação historicamente informada" ou não se ostenta. Será mesmo assim?
Um dos grandes sábios e especialistas em música antiga dos nossos tempos é o catalão Jordi Savall, a quem perguntei como surgiu a vocação para este género, tendo em mente que até deu os primeiros passos na música pelo caminho mais convencional. «O entusiasmo pela música de Simpson, Marais ou Bach vinha de antes, mas foi sobretudo depois de terminar os estudos de violoncelo que me apercebi que havia um imenso repertório para viola da gamba por descobrir. Decidi então abandonar o violoncelo porque me fascinou o desafio de rastrear um mundo novo e criar algo nesse mundo.» Sublinhe-se que Savall foi um autodidata na aprendizagem da viola da gamba: «Estudei 8 horas por dia durante 10 anos para aprender a tocar a viola da gamba corretamente, sem ajuda. A minha professora foi a própria música e, finalmente, fui encontrando o meu rumo com base nas informações que fui reunindo e assimilando.»
À vocação juntou-se portanto a devoção pelo instrumento e pelo próprio repertório, muitas vezes encontrado sob um manto de poeira numa estante quase imaculada de uma qualquer biblioteca de Paris, Roma ou Londres. «Nos anos 60, não havia nada editado e a única possibilidade de acesso à música de Ortiz ou Sainte-Colombe era ir às bibliotecas e pedir microfilmes de originais», afirma Savall. Pergunto-lhe se considera que esse compromisso com o património musical histórico, tão característico de um especialista em música antiga, se está a perder com o passar dos tempos e com o surgimento das novas tecnologias de digitalização. «É verdade que hoje em dia qualquer facsimile se pode encontrar na Internet e que abundam as edições modernas de obras antigas, mas há uma coisa que não muda: mesmo que tenhas uma versão urtext, essa versão acaba por ser sempre uma interpretação do original.» Savall sublinha a singularidade do documento original por ser a única ligação realmente fidedigna ao seu criador: «mesmo nas sinfonias de Beethoven, continuo a descobrir detalhes nos autógrafos que não constam nas edições modernas, ou melhor, constam ligeiramente alteradas e já são uma interpretação supostamente racional.»
Com 80 anos de idade, mas com uma energia e um entusiasmo inabaláveis, Savall defende que não se trata de que Monteverdi ou Händel tenham qualquer coisa que Hindemith ou Bártok não tenham, ou vice-versa: «Cada época produz o seu nível de compositores geniais, como também tem os seus pintores, que representam a descoberta de novas formas criativas. Há compositores que são simplesmente indispensáveis, que não podemos esquecer ou ignorar, independentemente do tempo em que viveram. E hoje sabemos que, quanto mais nos aproximarmos à ideia do compositor, mais fácil é evocar e realçar a genialidade da sua música.»
Nesse sentido, é pertinente lembrar que a grande evolução na qualidade e quantidade de agrupamentos especializados transformou por completo o paradigma interpretativo dos últimos 40 ou 50 anos. «As orquestras modernas normalmente não têm os recursos técnicos adequados para fazer música antiga. Nos anos 70 eu fazia muito mais música antiga antiga com orquestras modernas do que hoje em dia, porque no presente já há muitos agrupamentos especializados com excelentes meios técnicos e práticos. Eles ganharam um espaço próprio e os programadores preferem convidar esses artistas para as suas temporadas e festivais.»
Por último, há um tema sobre o qual me interessa especialmente a experiência de Jordi Savall: existe ou não por vezes algum menosprezo em relação a músicos que até iniciaram uma formação ou uma carreira no âmbito mais "tradicional", mas que, a certo ponto, optaram exclusivamente pela música antiga? «Existe e eu senti esse complexo na pele», afirma categoricamente Savall reconhecendo que «é verdade que sempre existiram muitos músicos medíocres que se escudam na suposta especialização na música antiga e outros que utilizam quase unicamente os conhecimentos musicológicos para justificar a música que fazem.» Mas também salienta que a música é uma arte com diversos e distintos parâmetros e patamares e que hoje em dia a exigência técnica e a suposta perfeição engolem por vezes outros valores muito mais importantes, como por exemplo a humanidade do músico e a dimensão artística da própria música. «Mesmo num nível amateur em que a alguns de nós nos possa parecer que os músicos desafinam e que tudo soa mal, a música acontece e esses músicos estão a desfrutar imensamente da música que estão a criar. Como quando uma mãe canta uma canção de embalar a um bebé: ao bebé não lhe importa absolutamente nada se a mãe desafina, importa-lhe sentir a emoção e o amor. Esta é a magia da música.»
Bruno Borralhinho
Janeiro de 2022