Tema & Variações

Convidado Especial: René Pape

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Bruno Borralhinho

Coluna mensal sobre o mundo da tal música que é clássica para uns e erudita para outros. Assuntos de abundante subjetividade e, por vezes, pouco isentos de polémica. Daqueles sobre os quais todos os músicos conversam e discutem, mas nunca chegam a conclusões cabais. Daqueles que permitem saciar a curiosidade do público entusiasta e, já agora, construir pontes e viadutos comunicacionais entre o palco e a plateia. E para que ninguém ouse levar os temas pouco a sério, as variações serão comentadas e discutidas em exclusivo com alguns dos melhores músicos do planeta.

 

A voz do canto

 

Convidado Especial:  René Pape

 

René Pape é um dos cantores mais prestigiados da atualidade e a sua fantástica carreira conta mais de 160 apresentações e 18 distintos papéis na Metropolitan Opera de Nova Iorque. Convidado regular das principais casas de ópera do mundo, é membro do ensemble da Staastoper de Berlim desde 1988 e um reconhecido especialista do repertório wagneriano. Gravou para a Deutsche Gramophone e para a EMI, foi aclamado em recitais no Carnegie Hall, na Wiener Staatsoper ou no Wigmore Hall, e é detentor de inúmeras distinções internacionais.

Segundo Richard Wagner, «o elemento mais antigo, mais genuíno e mais belo da música, o elemento ao qual a nossa música deve a sua própria existência, é a voz humana». Enrico Caruso, por seu lado e certamente com algum humor à mistura, defendeu que para se ser um bom cantor basta ter «um pulmão enorme, uma boca grande, noventa por cento de memória, dez por cento de inteligência, ser trabalhador e ter qualquer coisa no coração». Mas quem são afinal esses protagonistas do canto que tanto idolatramos como estranhamos, por vezes até como se de uma espécie alienígena dentro do próprio meio musical se tratasse?

Falar de cantores implica para muitos uma inevitável referência aos habituais estereótipos que divas e prima-donas alimentam e alimentaram sem contrição ao longo das suas carreiras. Sinceramente, não posso confirmar tais clichés como sendo exclusivos do canto, nem pouco mais ou menos: conheço pseudo-divas e pseudo-prima-donas em todas as categorias musicais – instrumentistas, investigadoras e investigadores, maestrinas e maestros – que o são sem sequer haver qualquer justificação plausível para o que sejam, para além da própria presunção e vaidade. Pelo contrário, todos os cantores com quem tive oportunidade de trabalhar ao longo da minha (possivelmente ainda demasiado curta) carreira são músicos com uma enorme sensibilidade e com grande disponibilidade para descobrir, aprender e trabalhar arduamente num meio muito rigoroso, exigente e competitivo.

René Pape é um dos baixos mais prestigiados e venerados em todo o mundo, no presente e desde sempre. Quis o destino que fosse também meu vizinho e, portanto, não pude deixar de lhe pedir ajuda nesta mini-investigação sobre as vicissitudes de ser cantor de ribalta, sobre o caminho até lá e sobre como é poder presentear o mundo com a genialidade desse instrumento fascinante a que chamamos voz. Especialmente conhecido pelas suas imaculadas e fulminantes interpretações wagnerianas, o seu repertório é no entanto muito mais alargado e versátil, numa carreira que o transformou num dos mais assíduos e adorados convidados da Metropolitan Opera de Nova Iorque, das óperas Viena, Paris, Londres e Berlim, em Salzburgo ou em Bayreuth.

Nascido em Dresden, Pape iniciou os seus estudos musicais no colégio interno para rapazes do famoso Dresdner Kreuzchor, uma instituição fundada no século XIV com ênfase na formação de jovens cantores que entretanto conquistou grande prestígio internacional e é, aliás, uma das poucas instituições do género que sobreviveu ao passar dos séculos. «Não fui um aluno particularmente aplicado ou ambicioso, mas tinha um certo talento e sobretudo uma crença muito firme nas minhas habilidades», afirma Pape. «Cresci com a música sacra, experimentei-a em todos os tipos de voz, e compositores como Schütz, Bach e Reger foram muito marcantes para mim.» Começou a estudar canto oficialmente na Hochschule für Musik de Dresden com 17 anos e alguns anos depois foi convidado para integrar o ensemble da Staatsoper em Berlim, do qual é membro desde 1988. «Após a queda do "Muro de Berlim" em 1989 abriram-se para mim muitas portas e portões e pude logo começar a fazer música com grandes artistas internacionais», reconhece Pape, lembrando ao mesmo tempo que os seus colegas da época Peter Schreier e Theo Adam «tiveram uma grande influência e despertaram em mim uma certa ambição». Segredos para o sucesso? Pape confessa que, a par dos quase obrigatórios talento e trabalho, também é necessária alguma sorte. Mas salienta que, acima de tudo, «cantar sempre me deu e continua a dar um imenso prazer».

Uma pergunta que muitas vezes me coloco é, o que pensa o próprio cantor sobre a sua voz como, por exemplo, o que pensa um instrumentista sobre o seu próprio som, e quais são as suas prioridades nesse processo tão singular e peculiar de produção sonora. Pape responde sem hesitação: «acho que a minha voz pode abranger um espectro bastante amplo de timbres e sentimentos. A clareza do texto e, por conseguinte, a compreensibilidade do conteúdo desempenham sem dúvida um papel muito importante. Além disso, há também aspetos importantes como a expressividade e o prazer de representar, pelo menos na ópera. Mas para ser sincero, quando canto tento não pensar em mais nada senão na própria música como um todo e, no caso da ópera, na interação com os restantes personagens.»

Voltando à citação de Wagner e ao tal «elemento mais genuíno e belo da música» que é a voz humana, até que ponto as suas propriedades podem ser comparadas a um instrumento? E podem os timbres e as características de determinados instrumentos servir de referência ocasional ou geral para um cantor? Pape sublinha que «a voz humana é um instrumento muito especial porque se faz ouvir pela vibração de apenas duas cordas diminutas localizadas na laringe. Por isso é mais normal comparar a voz humana com um instrumento de cordas, embora na prática possamos imitar outros instrumentos». Ou seja, a tal associação aos timbres instrumentais é real, por vezes até de forma inconsciente, tal como ao invés se procuram as cores e os timbres da voz humana na interpretação de obras para piano, violino ou clarinete de Schubert, Schumann, Brahms, e tantos outros.

Por falar em repertório, Pape reconhece que, por se ter dedicado a «uma grande variedade de papéis, de compositores e épocas ao longo da carreira», acabou por desenvolver «amor e preferência pelo romantismo». «Mas claro que tenho total abertura por outros estilos de música: gosto tanto de Bach como de Mozart, de Verdi como de Wagner, de música checa como de música francesa.» De qualquer forma, não considera que se trate de uma preferência premeditada pela adequação desse repertório à sua própria voz e apenas admite, «formulando o assunto de forma diplomática», que não sente «vínculo especial» com a música contemporânea. «Embora também aborde domínios com os quais ninguém me associa, a verdade é que sou mais procurado pelo repertório pelo qual sou já conhecido e mais cantei ao longo da carreira.»

Sobre a hipótese de o mundo do canto ser especialmente competitivo, Pape confessa que a competitividade é um tema que lhe passa ao lado. Talvez deliberadamente. «Os únicos concursos em que participei na minha vida e em que tive sucesso foram concursos nos quais competi de forma amigável com outros colegas. Nunca senti necessidade de entrar nesse sistema de disputa e rivalidade, até porque isso não existia no meio de onde eu vinha quando era jovem.» Pape declara com certo orgulho que sempre esteve «um passo à frente dessa sociedade regulada pelo acotovelamento». «O mais importante para mim ainda é o prazer que tenho a cantar e, dessa forma, poder fazer as outras pessoas felizes.»



Bruno Borralhinho, Fevereiro de 2022

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