Coluna mensal sobre o mundo da tal música que é clássica para uns e erudita para outros. Assuntos de abundante subjetividade e, por vezes, pouco isentos de polémica. Daqueles sobre os quais todos os músicos conversam e discutem, mas nunca chegam a conclusões cabais. Daqueles que permitem saciar a curiosidade do público entusiasta e, já agora, construir pontes e viadutos comunicacionais entre o palco e a plateia. E para que ninguém ouse levar os temas pouco a sério, as variações serão comentadas e discutidas em exclusivo com alguns dos melhores músicos do planeta.
Epílogo?
Escrever uma coluna mensal tem sido uma aventura extremamente enriquecedora. Desde a escolha dos temas, à procura de convidados de prestígio com especial ligação aos mesmos, pude recolher informações inéditas, opiniões que justificam ideias e experiências próprias, ou outras que me fizeram ver um determinado assunto de uma perspetiva completamente diferente. Por vezes, inesperada. Foram doze capítulos (este já é o décimo terceiro) de uma história deveras nova na minha vida, mas que a mesma vida me exige agora terminar ou, pelo menos, suspender para dar lugar a outras tarefas e desafios.
A minha intenção era fazer neste momento uma espécie de síntese, talvez destacar quatro ou cinco temas e argumentos ou apenas lembrar outros tantos. O presente insta-me no entanto a enveredar por outro caminho e a colocar o dedo numa ferida muito antiga mas tão atual, que nunca sarou com o passar dos tempos e que provavelmente permanecerá para sempre em carne viva: a música é política ou apolítica?
Muito se tem falado e escrito sobre este problema nos últimos dias e semanas, muitas ideias e pontos de vistas interessantes foram surgindo, alguns com origem em protagonistas do mundo da música mais ou menos expostos no que diz respeito à invasão da Ucrânia pelas tropas do Kremlin. Aos ímpetos iniciais de isolamento e exclusão de tudo o que era russo, parece agora haver mais equilíbrio e racionalidade nas decisões tomadas e já quase todos nós (infelizmente não todos) percebemos que é absolutamente irrazoável e ridículo banir obras de Tchaikovsky ou Rimsky-Korsakov das salas de concerto como forma de protesto, de pressão ou de outra coisa qualquer. Do mesmo modo, é insensato e injusto banir sistematicamente artistas ou até jovens músicos de um qualquer concurso ou candidatura, sem que lhes seja dada uma mínima oportunidade de se pronunciar, pelo simples fato de serem russos.
Mais complexa é certamente a questão do relacionamento dos agentes musicais e culturais "ocidentais" ou com responsabilidades no “ocidente” que possuem laços diretos e assumidos com o governo de Vladimir Putin. Os casos mais mediáticos foram certamente o do maestro Valery Gergiev, “despedido” da Filarmónica de Munique, do Festival de Edimburgo ou do Festival com o seu próprio nome em Roterdão, e da soprano Anna Netrebko, afastada de várias produções em Nova Iorque e Berlim, por exemplo. Em protesto pelos protestos sobre a sua aparente abstinência de opinião, o maestro Tugan Sokhiev acabou por renunciar tanto do Bolschoi de Moscovo como em Toulouse.
Voltando ao cerne da questão ou à questão que flutua no cerne da discussão, é portanto pertinente que nos perguntemos sobre o lugar da música neste mundo tão complicado em que vivemos. Atrevo-me a colocar o assunto sobre a mesa e é certo que este me desperta especial interesse porque, por exemplo, passei alguns dos últimos anos a investigar e a estudar a relação entre o poder e a música erudita, dita “clássica”, em Portugal ao longo do século XX. É imperativo sublinhar que cada caso é um caso e que, por vezes e erroneamente, tentamos encontrar soluções fáceis para problemas muito mais sofisticados e com variantes múltiplas. Além disso, não se trata de fazer uma análise musicológico-pericial e de discutir se determinada obra ou compositor possuem conotação política ou não – para isso, basta hoje em dia uma rápida pesquisa em perímetros fiáveis da Internet ou uma espreitadela em literatura de qualidade.
O que julgo estar em questão é o posicionamento (ou falta dele) oficial e público de pessoas e instituições do mundo da música sobre uma agressão absolutamente inaceitável de um país a outro. Bem sei que a questão pode não ser tão simples e que há tensões acumuladas desde há vários anos que envolvem outras potências mundiais e os sempre inevitáveis interesses económicos, há jogos de bastidores e propaganda, como bem sei que existiram num passado muito recente outros conflitos semelhantes tanto em território europeu como pelo mundo fora que simplesmente ignorámos ou esquecemos, certamente pela inexistência ou escassez de cobertura mediática à altura da gravidade desses mesmos conflitos. Mas nada disso desculpa o que vivemos no presente, o que meros cidadãos ou os soldados ucranianos (e russos) enfrentam neste momento.
Por tudo isto, sim, é compreensível que figuras públicas e grandes referências do mundo da música como Gergiev e Netrebko, principalmente por serem conhecidos e assumidos amigos de Putin, se devam retratar perante as atrocidades russo é responsável. Se não o fizeram a esta altura do campeonato, é porque não estarão propriamente em desacordo com o amigo Vladimir. Claro que muitos temerão represálias e até pela segurança de familiares e amigos na Rússia, mas porque é que uns dão o passo e outros não? É neste dilema de mutáveis ramificações que a música e os músicos se tornam atores políticos, inspirando ou defraudando o seu público, os seus colegas, o mundo. O silêncio ensurdecedor de alguns torna-se insuportável quando consente a dor de outros e, num tempo como o que vivemos atualmente, escudar-se em palavrórios de conveniência – os mesmos que defendiam que a música não é mero entretenimento, afinal agora só fazem música para gerar felicidade e prazer instantâneos – é tudo menos apolítico.
Como se nada fosse, Gergiev dirige O Anel do Nibelungo em março e abril com um elenco exclusivamente russo na fantástica sala Sarjadje de Moscovo, que ele próprio inaugurou em 2018 na presença do seu estimado Vladimir. Ironia do destino ou talvez não, Siegfried lutará mais uma vez pela liberdade e por um mundo melhor contra a ganância e o poder cego dos deuses... será que também em Moscovo triunfará finalmente o amor de Siegfried e Brünnhilde, e o fogo destruirá a morada dos deuses malditos e devolverá o ouro às donzelas do Reno?
Bruno Borralhinho, Março de 2022